‘Trabalho Escravo no Brasil do Século XXI’, publicação lançada pelo escritório da Organização Internacional do Trabalho de Brasília, destaca avanços nos últimos anos, mas não deixa de apontar empecilhos para um combate mais efetivo.
Indefinições no Poder Judiciário e resistências no Poder Legislativo podem ser considerados alguns dos principais entraves para a erradicação de um tipo de crime que, lamentavelmente e mesmo depois de mais de mais de um século da assinatura da Lei Áurea, continua fazendo parte da realidade brasileira. A análise crítica contida na publicação Trabalho Escravo no Brasil do Século XXI, lançada, na quarta-feira (20), pelo escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de Brasília, destaca avanços importantes nos últimos anos, mas não deixa de apontar empecilhos e lacunas para um combate mais efetivo.
Elaborado pelo jornalista e cientista político Leonardo Sakamoto, da organização não-governamental (ONG) Repórter Brasil e colaborador da Carta Maior, o relatório traz uma avaliação discriminada das metas Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo. Na parte da legislação – incluídas no grupo das Ações Gerais do plano – apenas 13,3% das metas foram efetivamente cumpridas. Para efeito de comparação, 44,4% das metas específicas de conscientização, capacitação e sensibilização do plano alcançaram êxito e os indicadores plenamente cumpridos de melhoria na estrutura administrativa do Grupo Móvel de Fiscalização do trabalho escravo são 38,5%. No total, 22,4% das metas foram totalmente cumpridas.
Matérias como a definição do aumento da pena mínima para o crime de trabalho escravo e a proposta emenda constitucional (PEC) 438/2001, que determina o confisco de terras onde for encontrado trabalho escravo, encontram resistência entre os parlamentares. Esta última chegou a ser aprovada em primeiro turno na Câmara dos Deputados, em 2004, e, desde então, não foi colocada para votação em segundo turno no plenário da Casa.
A definição da competência criminal – entre a da Justiça Eleitoral e a Estadual – para julgar casos de trabalho escravo também certamente contribuiria para o esforço de erradicação desse mal, adiciona o relatório. Seis votos – quatro a favor (o relator, Joaquim Barbosa, Eros Grau, Carlos Ayres Britto e Sepúlveda Pertence) e dois contra (Cezar Peluso e Carlos Velloso) – já foram dados, mas o ministro Gilmar Mendes pediu vistas do processo. Faltam cinco votos para que o imbróglio seja superado. “O que importa é que essa questão seja definida logo”, recomenda Patrícia Audi, coordenadora do Projeto de Combate ao Trabalho Escravo na OIT no Brasil. Enquanto a Justiça não decide, explica a representante da entidade internacional, ocorrem prescrições. Acusados de prática do trabalho escravo recorrem a uma súmula de crime contra a organização do trabalho e os processos voltam para a alçada dos Estados, o que acaba prolongando o intervalo entre a denúncia e um possível julgamento.
Ainda de acordo com a avaliação do Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, o processo iniciado em 1995 “ainda vive uma etapa de institucionalização”, ou seja, apesar do razoável número de entidades governamentais e não-governamentais envolvidos na empreitada, há espaço “para que atores dos Três Poderes” possam participar de modo mais efetivo. Medida importante a ser tomada seria a implementação de um plano de prevenção ao trabalho escravo, com inclusão de projetos de geração de emprego e renda, envolvendo entes estaduais e municipais.
Diagnóstico avançado
De acordo com a socióloga Laís Abramo, diretora da OIT no Brasil, a publicação tem como objetivo proporcionar condições para que o país se mantenha na “vanguarda” do combate ao trabalho escravo, já que o que foi feito até aqui tem merecido destaque tanto na agenda global como na hemisférica. E a principal materialização disso foi mesmo o Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, que começou a ser elaborado em 2002 e foi lançado em 2003.
Também presente na coletiva de imprensa de lançamento de Trabalho Escravo no Brasil do Século XXI, o chefe do Programa Internacional de Combate ao Trabalho Escravo da OIT, Roger Plant, pontuou que atualmente cerca de 12 milhões de pessoas estão sendo mantidas em regime de trabalho escravo no mundo; cerca de 9,5 milhões delas só na Ásia. Na América Latina e no Caribe, estima-se que esse contingente atinja pelo menos 1,3 milhão de trabalhadores. Ele também ressaltou a atuação do Conselho Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) na iniciativa brasileira, que, segundo ele, já resultou em impactos positivos em outros países como Peru, Bolívia e Paraguai. Plant pediu vontade política e recursos materiais para que o maior números de atores se engajem na Aliança Global Contra o Trabalho Escravo, que pretende “terminar com essa praga” até 2015.
A estimativa, no Brasil, é de que haja ainda 25 a 40 mil seres humanos na condição de trabalhadores escravo. De 1995 a 2005, quase 18 mil (17.983) pessoas foram libertadas em ações dos grupos móveis de fiscalização, integrados por auditores fiscais do Trabalho, procuradores do Trabalho e policiais federais.
Em quase 70% dos casos de ocorrência do crime, as propriedades flagradas não possuíam registro legal junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). “O trabalho escravo vem geralmente acompanhado de outros crimes, como a grilagem de terra, o desmatamento e casos de violência (por conflitos no campo)”, define Patrícia. Entre as atividades econômicas, mais de 80% dos casos de trabalho escravo se referem à pecuária, seguidos de algodão e soja (10%), cana-de-açúcar (3%) e pimenta do reino (3%). Geralmente o crime ocorre, no entanto, na atividade de limpeza do terreno e derrubada de florestas, e não na atividade fim. “O único capital que essas pessoas têm é a força bruta”, especifica a coordenadora do projeto da OIT no Brasil.
O perfil dos aliciados é bastante uniforme. Homens de 18 a 44 anos com baixo grau de instrução (até dois anos de escolaridade), migrantes (91,5% do total) e provenientes, em sua maioria absoluta (76%), de quatro Estados – Maranhão (39%), Piauí (22%), Tocantins (15%) e Pará (8,5%). A cada dez jornadas de trabalho desse tipo, em geral, os trabalhadores acabam sendo submetidos ao trabalho escravo em pelo menos uma.
O aproveitamento criminoso dessa situação de vulnerabilidade, contudo, está, pouco a pouco, “deixando de ser um bom negócio”, segundo as palavras de Patrícia, da OIT. Pelas conseqüências da divulgação da “lista suja” – que inclusive já estão sendo adotadas como referência por instituições financeiras como critério para a recusa da concessão de crédito financeiro – e pela adesão ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo por parte de mais de 80 empresas de peso na economia nacional, se comprometendo a não adquirir produtos que possam ter alguma ligação com o crime no Brasil.
Além disso, empregadores criminosos recebem multas e um passivo legal devido aos trabalhadores. Em decisão histórica, o Tribunal Regional do Pará exigiu R$ 5 milhões de indenização (por questões como reincidência, gravidade das condições em que as pessoas foram encontradas etc.) a um empregador pela prática de trabalho escravo. Espera-se que, com a superação de entraves no Legislativo e no Judiciário relativos à punição dos responsáveis pelo crime e ações de restrições econômicas, quebrar com as duas vertentes da espinha dorsal do trabalho escravo: a impunidade e a ganância de alguns empresários.
Fonte: Agência Carta Maior (Maurício Hashizume)