ESCRITO POR GABRIEL BRITO, DA REDAÇÃO (Carta Maior 26/01/2012)
No último domingo, a cidade de São José dos Campos, mais precisamente o bairro do Pinheirinho, foi palco de novas cenas da brutalidade e completa ausência de sentido democrático do governo paulista. Como tratamos na matéria sobre a Cracolândia, trata-se, definitivamente, de uma cidade e estado subjugados por um autêntico reich, que já leva duas décadas e não pára de intensificar suas ações contra as maiorias, massas trabalhadoras, pobres, desvalidas, em geral negras e periféricas.
Para qualquer pessoa que goste de se declarar “de bem”, favorável ao bom cumprimento de leis e direitos, sem distinções de classe, raça, idéias, as cenas da barbaridade policial permitidas pelo judiciário e prefeitura locais causam engulho profundo, ferem a alma e trazem revolta em relação às eternas opressões e humilhações que a burguesia e sua milícia armada impõem às classes subalternas, que costumam ganhar a dura vida prestando importantes serviços a esses mesmos privilegiados.
Interesses mafiosos
No entanto, antes de prosseguir na descrição de toda a desumanidade e corrupção que regem os governos tucanos, cada vez mais desmascarados e desmoralizados, é preciso situar o leitor a respeito de toda a história em torno do terreno localizado na cidade também dominada pelo PSDB – afinal, o interior paulista é um grande sustentáculo do conservadorismo e direitismo nacionais.
Ocupado desde 2004 por pessoas que não tinham casa para morar, a área possui 1,3 milhão de metros quadrados, sendo, obviamente, extremamente cobiçada pelo mercado imobiliário e construtor, que, também dito acerca da Cracolândia, é quem verdadeiramente manda e desmanda na atual “política”, em todas as escalas, municipais, estaduais e federal.
Originalmente, era uma vasta área de fazenda pertencente à família Kubitzky, de imigrantes alemães, desejada por empresários da época, que tentaram por algumas vezes, em vão, adquirir a propriedade. Misteriosamente, toda a família de quatro irmãos idosos foi exterminada, numa chacina registrada pela imprensa grande de então, ocorrida em 1º de julho de 1969. Sem herdeiros, o terreno passou automaticamente para a posse do Estado. Quanto ao crime, jamais foi esclarecido
Depois de certo tempo, empresários milionários já apareciam como proprietários do local, que passou a integrar o patrimônio da empresa Selecta, que, entre outros cabeças, incluía Naji Nahas, conhecido especulador e doleiro, historicamente envolvido, e condenado, em inúmeros crimes financeiros.
Com uma dívida de cerca de 10 milhões de reais de IPTU, o terreno é massa falida, há décadas, da Selecta. Ou seja, ao defender a reintegração de posse, a prefeitura de São José simplesmente atuou em favor de seu devedor, contra famílias compostas por trabalhadores que há anos davam vida ao Pinheirinho, que já se constituía como mais um bairro popular de modestas condições, como milhares que conhecemos Brasil afora. Não se tratava de uma favela, como noticiou maliciosamente a grande mídia, outro braço da tropa de choque tucana.
Como já explicado por jornalistas e também pelo deputado federal Protógenes Queiroz, conhecedor profundo das práticas de Nahas desde a Operação Satiagraha – anulada na justiça por envolver até a mãe dos plutocratas nacionais, à “esquerda” e à direita -, o criminoso financeiro libanês tem interesse total em retomar o terreno e usá-lo no abatimento da estrondosa dívida de sua antiga empresa – dentre tantas…
“Justiça” de classe, como sempre
Mostrando sua cara mais patrimonialista e anti-social, o judiciário local, através da juíza Marcia Faria Mathey Loureiro, concedeu, reiteradamente, a ordem de reintegração de posse, a ser promovida pela PM, com seus conhecidos métodos. Até aí, nenhuma menção ao caráter escuso dos interessados em reaver o terreno, muito menos à questão da função social da terra, outro ditame que não sai do papel neste país.
Prevendo um massacre, movimentos sociais e algumas autoridades de Estado conseguiram promover reuniões entre as partes envolvidas e adiar a reintegração. Tudo parecia relativamente acalmado, principalmente após reunião que envolveu o próprio governador Alckmin e outros políticos, ainda no sábado, quando se acordou que não haveria reintegração abrupta e não negociada. Ainda mais com a ordem da juíza Roberta Monza Chiari, do 3º. Tribunal Regional Federal, de suspensão temporária da ação, expedida na sexta-feira, 20.
No entanto, no alvorecer do último domingo, a farsa e má-fé dos tucanos se mostraram ao mundo inteiro. 2000 policiais fortemente armados foram mobilizados para retirar as cerca de 8000 pessoas que habitam o Pinheirinho, promovendo uma batalha campal que durou horas, causando desespero, sofrimento e muito pânico nos moradores, com enorme número de mulheres, crianças e idosos.
Só o fato de haver desobediência à ordem de instância superior, federal, sob a benção presencial do desembargador Rodrigo Capez, irmão do deputado estadual tucano Fernando Capez, já mostra claramente as intenções dessa ala política seqüestrada e financiada pelo setor imobiliário. Sabendo-se claramente da violência que a desocupação do local geraria, em momento algum se quis suspender a operação, que tampouco poderia se realizar numa madrugada dominical.
“O proprietário é um notório devedor de impostos, notório especulador, proibido de atuar nas bolsas de valores de 40 países. Só aqui ele é tratado tão bem”, afirmou, em entrevista ao Portal Terra, Aristeu Cesar Pinto, da OAB local. Por sinal, a entidade apura as inúmeras denúncias de óbitos, tendo anunciado na segunda-feira que os indícios de morte são os maiores possíveis.
Uma tragédia ainda a ser contabilizada
Ao menos de acordo com moradores e militantes presentes na reintegração, as mortes já são uma certeza. “É preciso fortalecer a denúncia dos três assassinados no domingo, com total bloqueio da imprensa. Os corpos não foram levados para o IML de São José e estão desaparecidos. Um deles é uma criança de 4 anos de idade, que chegou morta ontem às 18 horas ao PS Vila Industrial, após levar um tiro de borracha no pescoço. Temos várias testemunhas, mas os hospitais – por ordem expressa da prefeitura e da PM – não confirmam as informações, temendo ampliar a indignação e a resistência”, contou Guilherme Boulos, militante do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, em protesto em frente ao Palácio dos Bandeirantes que marcou o início da semana.
Por sinal, Boulos foi covardemente espancado pelos policiais militares, que novamente voltaram a demonstrar uma tenebrosa vocação que em nada deve aos oficiais nazistas, colocando-se perfeitamente à altura da Gestapo e SS. Não à toa, brotam sem parar pela internet ilustrações e insígnias relacionando os tucanos aos nazistas alemães, visto ser cada vez maior o número de pessoas que notam como todos os assuntos sociais vêm sendo “resolvidos” pela PM em São Paulo. Folgam exemplos, como os fatos recentes da USP, na Cracolândia, na favela do Moinho, nos protestos contra aumento da tarifa do transporte público…
Como dito pelos próprios moradores, pessimamente alojados em tendas ao lado do local onde até outro dia tinham suas vidas pra tocar, sem a mínima estrutura e garantias, o balanço dos prejuízos só poderá ser feito após a polícia deixar o local, completamente sitiado, com a ajuda da Guarda Civil Metropolitana, que se caracteriza pela implacável violência destinada aos trabalhadores informais, pobres, miseráveis e afins.
Porém, muitos seguem afirmando que, sim, ocorreram mortes, pois, além de entrarem na área disparando suas balas de borracha, os policiais possuíam pistolas e luvas de borracha (para assassinar sem vestígios?!), informações omitidas, ou mentidas, pelo governo Alckmin e sua mídia aliada. Basta pesquisar imagens e vídeos feitos por diversas pessoas para se comprovar a violência letal com que a polícia atacou os moradores.
Além do mais, logo surgiram denúncias a respeito de pressões e ordens partidas dos policiais à administração do hospital público de São José, que recebia as vítimas da reintegração em favor do doleiro procurado pela Interpol e proibido de entrar em 40 países. “Polícia de São José e a Rota, da polícia militar do estado de São Paulo, estão SEQUESTRANDO os feridos e mortos, e SUMINDO com os corpos! Isso é REAL!”, denunciou Pedro Rios Leão, via internet, outra testemunha ocular dos fatos.
Talvez sem medir o nível de barbárie atingido, o governo tucano ignorou claramente todas as tentativas de resolução pacífica, e justa, do conflito de interesses tão diametralmente opostos. De um lado, 1500 famílias, de outro, um notório gângster, envolvido com a quebra da bolsa do Rio nos anos 80, o escândalo dos precatórios dos malufistas nos anos 90, a privataria e seus dutos em paraíso fiscal até os dias atuais… Ah, sim, também bilionário freqüentador dos mesmos ambientes sociais de todos os políticos e juízes aqui citados, como explicou o jornalista Marques Casara.
Diante disso, fica impossível discordar do deputado federal Ivan Valente, que resumiu a ação tucano-judicial-policial como autêntica “justiça de classe”, colocando o direito ao patrimônio em patamar superior ao direito à vida e à moradia, entre outros essenciais direitos humanos, ignorados por uma juíza que não pode seguir na carreira sem passar por uma séria investigação – e processo de responsabilização.
País para poucos
“No Brasil, os comandantes do agronegócio responsáveis pelo desmatamento ilegal de mata nativa e áreas de proteção ambiental até 2008 podem receber anistia de suas multas (ou seja, não vão pagar pelos crimes ambientais) e continuar na área ocupada. No mesmo país, milhares de pessoas pobres que moram desde 2004 em uma região até então abandonada, são expulsas violentamente de suas casas, impedidas de continuar na área ocupada. Em um caso, ocupar foi permitido. Em outro, não. Brasil, um país de poucos”, resumiu Lívia Morais, cidadã joseense presente à retirada das famílias, em uma de suas mensagens na internet – mais uma a garantir que houve mortes.
“É a queda de braço entre a lei, o povo, e um homem que pode derrubar metade da República. Todos os agentes sabem exatamente o que acontece, um assessor da presidência tomou um tiro, pessoas foram assassinadas e seus corpos seqüestrados na frente de todo mundo. Incluindo duas crianças, uma de quatro anos e outra de meses. Pessoas foram mortas, inclusive, depois da desocupação. Sobre tudo isso não existe nenhuma dúvida. E eu me ponho como fiador dessas provas. Prefiro correr o risco do que deixar isso acontecer calado. Descobri que existem três horas de material escondido com algumas pessoas que também estão em pânico. Também vou ao hospital tentar mais uma vez conversar com David Washington Castor Furtado, nossa única prova viva e rastreável. O David tomou um tiro nas costas, de um policial da guarda municipal, enquanto carregava um bebê de dois anos e agora está correndo risco de paralisia das pernas. Ele está sendo vigiado pelos seus mesmos algozes. Não se confundam, essa não é uma disputa jurídica. A lei está morta aqui. Isso é uma disputa política e depende de nós. Salvem David Washington Castor Furtado, divulgando o nome dele e cobrando explicações; se nós esquecermos dele, ele será morto”, clamou Pedro Rios, reforçando os apelos e denúncias.
Como todos já se perguntaram, fica a dúvida sobre a atuação do governo federal. Aparentemente favorável aos moradores, tentou negociar com a prefeitura e governo estadual e teve, como citado, até um de seus assessores feridos. Da mesma forma que em outros episódios, poderia enviar sua Força Nacional de Segurança, Polícia Federal e agentes do exército ao lugar do conflito. No entanto, atém-se a reuniões internas e tímidos pronunciamentos. Talvez por ser mais afeito aos repressores que aos reprimidos do Pinheirinho, como se viu no combate aos trabalhadores em greve em Jirau, na omissão ao genocídio indígena que recrudesce, na violentíssima e questionável invasão do Complexo do Alemão, sempre sob a égide das citadas forças de segurança, que desta vez descansaram nos quartéis.
Dessa forma, aos moradores do Pinheirinho resta somente lutar com as próprias energias e almas, possivelmente contando com a solidariedade dos verdadeiros militantes da justiça e dos direitos humanos, que se arriscam em meio à barbárie policialesca que nos assola. A luta não acabou, sabe-se que a disposição desses moradores é grande e há o mínimo de luz no fim do túnel, como mostra o Ministério Público, que ainda tenta impedir a expulsão dos habitantes e a reintegração de posse.
Entretanto, na democracia policial-imobiliária que vivemos, está mais do que na ordem do dia retomar a intensidade perdida das lutas sociais. O capitalismo se expande no Brasil e há um imenso e internacionalizado boom imobiliário em voga. Senhas suficientes de muitas trevas por vir e combater. O Pinheirinho não é e não será caso isolado.
Gabriel Brito é jornalista.