Rádios comunitárias: movimento deve radicalizar ações contra repressão

Na semana passada a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) fechou mais uma rádio comunitária em Pernambuco. A emissora JSP FM, do Jardim São Paulo, é uma das primeiras rádios comunitárias a serem instaladas no Recife; funciona desde a década de 80. Seu coordenador participou da instalação da maioria das rádios comunitárias da capital. Diariamente, a Rádio JSP abre espaço em sua programação para novas expressões culturais do estado, veicula notícias e campanhas de utilidade pública, prestando um verdadeiro serviço à sua comunidade. No dia 28, a emissora foi invadida por dez homens (quatro agentes da Anatel, quatro da Polícia Federal armados com metralhadoras e dois oficiais de Justiça). Com um mandado de busca e apreensão emitido pelo juiz Georgius Luis Argentini Príncipe Credidio, juiz substituto do trabalho, os agentes fecharam a emissora e apreenderam todos os equipamentos da rádio: transmissor, processador de áudio, microfones, mesa de som e de canais, computador, CD Player, amplificadores e um gerador.
A cena de truculência, de agressões verbais e abuso de autoridade não é nenhuma novidade no cotidiano daqueles que trabalham e lutam há décadas pelo funcionamento das emissoras comunitárias como um instrumento da democratização da comunicação no país. Depois de diversas tentativas de estabelecimento de diálogo com o governo federal, o movimento formado por parte dessas rádios decidiu agora radicalizar o processo de reivindicação de seu direito à comunicação. As emissoras organizadas em torno da Abraço (Associação Brasileira de Rádios Comunitárias) pretendem ir às ruas e pressionar de maneira mais forte o Ministério das Comunicações (MiniCom), que é o órgão responsável pela análise dos pedidos de concessão de outorgas.
“Esgotaram-se os canais de credibilidade que poderíamos ter com o governo e com o ministério. O governo está chegando em sua reta final, com pouco tempo de vida, e as coisas não mudaram. O momento da esperança e da credibilidade passou. Parte-se agora pra um momento de desesperança e de enfrentamento real, quando a expectativa de diálogo praticamente terminou. A radicalização é uma tendência que se manifesta espontaneamente devido a essa desilusão muito forte”, explica Ricado Campolim, membro da Coordenação Nacional da Abraço e do coletivo estadual da entidade em São Paulo.
No estado, segundo Campolim, há cerca de 260 rádios comunitárias autorizadas e mais de 3 mil em funcionamento. Somente na região metropolitana da capital, há 400 emissoras que aguardam a autorização do MiniCom, mas que são obrigadas a funcionarem na ilegalidade porque, até hoje, não se definiu qual o canal no dial que poderá ser ocupado pelas comunitárias.
“O governo caminha a passos lentos enquanto há uma urgência de medidas da Presidência da República para solucionar o problema dos tantos milhares de pedidos arquivados, parados e com situação indefinida. Há entidades que nem entram com pedidos por falta de crédito no MiniCom. Não confiam que o governo possa realmente resolver a questão das rádios comunitárias”, explica.
O movimento já solicitou uma audiência com a ministra Dilma Roussef, já que a Casa Civil vinha se mostrando mais aberta ao diálogo do que o próprio Ministério das Comunicações. Outra iniciativa será a realização de audiências públicas nos estados para a discussão do relatório do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) formado para discutir uma política do governo para as rádios comunitárias. Formado em novembro de 2005, o grupo começou a funcionar somente em fevereiro deste ano, com representantes dos ministérios e de órgãos como a Anatel, o Ministério Público e os Poderes Legislativo e Judiciário. Depois de 24 reuniões ordinárias e 10 extraordinárias, muitas com a participação da sociedade civil, o GTI concluiu um documento que aborda questões como os processos e procedimentos de análise e seleção do MiniCom para a concessão de outorgas, mudanças na legislação que regula o funcionamento das rádios comunitárias e a fiscalização das emissoras. Foi o segundo grupo de trabalho criado pelo governo Lula para debater o tema.
O relatório já foi encaminhado ao ministro das Comunicações, Hélio Costa. No entanto, apesar de já ter chegado às mãos das emissoras comerciais, ainda não foi divulgado oficialmente. Somente nesta sexta-feira (7) o movimento das rádios comunitárias teve acesso ao seu conteúdo, depois da pressão realizada durante uma videoconferência nacional que reuniu militantes pela democratização da comunicação de 13 unidades da federação (Bahia, Espírito Santo, Goiânia, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Distrito Federal).
Conectados via Interlegis, um sistema de câmeras de vídeo instaladas nas Assembléias estaduais e no Senado Federal, ele debateram com o MiniCom e com a Casa Civil as posições que o governo deve tomar agora que o GTI encerrou suas atividades. A proposta de criação do GTI partiu da Casa Civil e a sua coordenação ficou com o Ministério das Comunicações. A 6a videoconferência organizada pelo movimento de rádios comunitárias homenageou Conceição de Oliveira, que faleceu no Piauí logo após uma fiscalização na emissora em que trabalhava por conta da violência dos fiscais.
Segundo Alexandra Costa, coordenadora do serviço de radiodifusão comunitária do Ministério das Comunicações e relatora executiva do relatório, há um decreto presidencial que veda a divulgação de relatórios de grupos de trabalho sobre políticas públicas antes que o ente que o criou o receba. No caso, o presidente Lula ainda não recebeu oficialmente o documento – isso deve acontecer depois da volta de sua viagem internacional.
“O presidente Lula precisa logo abrir o relatório para que possamos discutir o que interessa. O ministro Hélio Costa, que responde pelos interesses do mercado comercial, já disse que é contra o documento. Ao mesmo tempo, há posições interessantes da Casa Civil. Então quem fala pelo governo? Não podemos mais ser enrolados. Estamos perdendo o controle sobre o movimento. No interior do Rio Grande do Sul já jogaram até uma bomba num carro da Anatel”, contou Clementino dos Santos Lopes, coordenador nacional da Abraço.

Conflito interno

Para o representante da Casa Civili no GTI, é natural que haja divergências dentro do governo Lula no que tange à regulamentação e funcionamento das rádios comunitárias. “Dentro do Palácio do Planalto há um grupo que tem uma visão e que está trabalhando na construção dessas posições. E há um grupo que pensa de forma diferente. Não há um bloco monolítico hegemônico, mas não há nenhum problema nisso. O que precisamos é chegar a denominadores comuns. Antes desse governo não se debatia uma mudança na questão da fiscalização e da anistia às rádios comunitárias. Agora, a discussão foi reaberta”, garante André Barbosa.
A Casa Civil tem adotado uma postura de diálogo com a Anatel e com seus últimos presidentes, que viam o ato da punição às rádios comunitárias que funcionam sem outorga como legal. “Há um processo de intuito autoritário no Brasil, que se dá por impulsos que usam a interpretação e o cumprimento da lei sem perceber o dinamismo dos processos. O que tentamos debater é que há uma diferença entre o direito constituído e o direito natural. É daí que vem a truculência nas fiscalizações. As pessoas não enxergam que o direito natural está acima do constitucional”, aponta Barbosa.
“Eu tenho a posição de que rádio comunitária não é crime, mas a nossa legislação criminaliza sim a ação das emissoras não autorizadas. Então temos que lutar para que não seja assim. Fazer uma indicação para o presidente Lula para que essa ação não seja criminal, para que não se fechem emissoras como a Pop Goiaba, em Niterói (RJ), lacrada recentemente”, disse. A Casa Civil já entrou em contato com a presidência da Anatel para questionar o porquê do fechamento da Pop Goiaba num momento em que o relatório do GTI aponta para outros processos de fiscalização das comunitárias, mais ainda não obteve retorno.

Recomendações

Apesar de ainda não tornado público oficialmente, o conteúdo do relatório elaborado pelo Grupo de Trabalho Interministerial foi apresentado simplificadamente durante a videoconferência desta sexta-feira. Uma das recomendações abordadas fala da necessidade de se discutir a sustentabilidade das emissoras comunitárias. Hoje, pela lei federal, elas são proibidas de receberam recursos advindos de publicidade. Somente o apoio cultural é autorizado, mesmo assim restrito a empresas com endereço num raio de um quilômetro da rádio. A proposta de mudança neste aspecto da lei é criticada sobretudo pelas emissoras comerciais, que temem perder verbas para as concorrentes.
Outra reivindicação do movimento das rádios comunitárias citada no relatório refere-se à possibilidade de formação de redes para a transmissão – também proibidas pela lei atual. “Os setores conservadores têm medo de que as rádios comunitárias formem uma rede para discutir a transformação social através das rádios. E é isso o que queremos: discutir a realidade comunitária, trocar experiências, programas, conteúdo, melhorar a qualidade de vida das pessoas e divulgar ações governamentais. Essa é a revolução que queremos fazer’, explicou Barbosa.
O documento também aponta para mudanças no processo de fiscalização por parte da Anatel. Em vez de ser violento, deve ser educativo, oferecer alternativas as emissoras, como a possibilidade de funcionar em outra freqüência enquanto aguarda sua definitiva. Atualmente, há rádios que são fechadas na reta final dos processos de concessão de outorga, quando estão esperando apenas homologação.
A celeridade e desburocratização nas autorizações de funcionamento é outro ponto central do relatório do GTI. A Casa Civil já solicitou ao governo mais recursos para o MiniCom, de forma a agilizar as outorgas, que hoje demoram em média dois anos para saírem. Desde 30 de outubro de 2004, há um decreto, ainda não implementado, para a reabertura das antigas delegacias regionais do MiniCom nos estados, o que agilizaria os processos.
Depois da chegada de Hélio Costa ao ministério, no entanto, o movimento pela democratização das comunicações tem poucas esperanças de uma mudança neste cenário. Em declarações feitas à imprensa, Costa se mostrou em alguns momentos contrário às rádios comunitárias e ao próprio relatório do GTI. “O ministro Hélio Costa não é contra as rádios comunitárias em hipótese alguma. Há apenas uma preocupação com as rádios que não atuam junto à sociedade e não são reflexo do que a comunidade deseja”, desmentiu Alexandra Costa.
Outro receio é que a Conferência Nacional de Radiodifusão Comunitária, agendada para abril do ano que vem, não saia das intenções do governo. Segundo a Casa Civil, a Secom (Secretaria de Comunicação da Presidência da República) já recebeu autorização para captar recursos para a construção do evento. Muita coisa, no entanto, segue em suspense. O presidente da Anatel será trocado em novembro e as emissoras comerciais, as empresas de telecomunicações e os provedores de internet já começam a fazer seu lobby.
No final de novembro, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados promoverá uma audiência pública para discutir o relatório do GTI e o futuro da radiodifusão comunitária no país. E no final deste mês, em Minas Gerais, acontece uma assembléia paralela da Abraço durante a plenária do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. Serão espaços para o movimento organizar sua mobilização não apenas contra a política adotada atualmente em relação às rádios comunitárias, mas contra seus principais defensores: os grandes e poucos grupos que hoje controlam a comunicação no país.

Fonte: Agência Carta Maior