O desembarque de tropas dos EUA para a realização de treze exercícios militares no Paraguai, ao longo do próximo ano e meio, causa polêmica nesse país e nos vizinhos da região. Um dos aspectos do escândalo é a imunidade jurídica concedida às tropas americanas pelo governo do presidente Nicanor Duarte Frutos.
Além dos debates sobre a imunidade, que agitaram o âmbito político paraguaio, circularam rumores nos países da região de que a administração Bush estaria a ponto de instalar uma base militar no Paraguai. O governo paraguaio desmentiu enfaticamente o boato, definindo-o como “delirante”.
No final de maio os governos do Paraguai e EUA assinaram um acordo sobre exercícios e intercâmbios militares bilaterais. Durante o período de vigência – de 1º de julho deste ano até 31 de dezembro de 2006 – as tropas americanas contarão com imunidade jurídica relativa. O acordo estabelece que as tropas americanas contarão com liberação alfandegária para a importação e exportação, isenções de impostos e inspeção dos produtos que utilizem.
A esquerda paraguaia considera que o acordo viola a soberania do país. Mas o governo Duarte Frutos sustenta que as imunidades são as mesmas aplicadas em outros países durante manobras militares de outras nações. “São exercícios normais”, alegou o presidente da Comissão de Relações Externas do Senado, Alejandro Velázquez. Na última sexta-feira (1.º de julho) chegaram ao Paraguai os primeiros 400 militares americanos de um contingente ilimitado de marines.
À época da assinatura do acordo, a ministra das relações exteriores, Leila Rachid, afirmou que “os soldados americanos terão as mesmas prerrogativas que os funcionários técnicos ou administrativos de delegações diplomáticas que capacitam nossos compatriotas”, e que a imunidade total só seria dada àqueles “que trabalharem com causas humanitárias”. Isso significa que, em caso de delitos cometidos pelos soldados, eles não poderão ser punidos nem levados à Corte Penal internacional, à qual o Paraguai aderiu.
No Equador, há um mês o governo negou a assinatura de um pacto concedendo imunidade especial aos soldados americanos da base de Manta, mesmo sob a ameaça americana de diminuir as verbas destinadas ao Equador para o “combate ao narcotráfico”.
Segundo o jornalista argentino Luis Bilbao, correspondente do jornal francês Le Monde Diplomatique, a decisão do Congresso paraguaio se deu logo após a queda do presidente boliviano Carlos Mesa e da exigência americana na OEA (Organização dos Estados Americanos), não aceita, de que se criasse um “mecanismo de supervisão das democracias” no organismo. Também acontece no momento em que o governo paraguaio trava uma batalha com movimentos sociais e oposição, contrários às privatizações em curso no país, e com movimentos camponeses em luta por terras.
“Washington deve formalizar agora uma base militar no Paraguai (onde, há anos, os EUA já mantém uma aeroporto semi-clandestino em Mariscal Estigarribia, povoado na região do Chaco, perto da fronteira com a Bolívia, onde se pode aterrissar aviões B-52 e Galaxies, capazes de transportar grandes quantidades de tropas e armamentos) e crava aí um alicerce estratégico para controlar os movimentos de convergência sul-americanos”, avalia Bilbao.
Neste mesmo sentido, ONGs argentinas denunciam que o principal alvo dos militares americanos será a região da Tríplice Fronteira (divisa entre Brasil, Argentina e Paraguai), que, segundo avaliação do jornal mexicano La Jornada, é o ponto chave dos projetos geoestratégicos americanos para controlar, com tropas de rápida mobilização, os países fronteiriços e implementar a “Guerra de Baixa Intensidade” contra os inexistentes terroristas supostamente entrincheirados na região.
Para preparar terreno, o secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, já garantiu que promoverá, em setembro próximo, um seminário de planejamento se segurança integral nacional com especialistas do Centro de Estudos Hemisféricos de Defesa, órgão ligado diretamente ao Pantágono. Mas já na última sexta-feira (1.º/7), o embaixador americano no Paraguai, John Keane, anunciou uma vultosa ajuda financeira ao país “para o combate ao tráfico de drogas, ao terrorismo, à lavagem de dinheiro e à corrupção”.
Brasil ameaçado?
Ter tropas americanas atuantes em dois flancos – no norte pela Colômbia e no sul pelo Paraguai – não deixa o Brasil em uma situação confortável. A análise é do deputado federal Dr. Rosinha (PT-PR), ex-presidente da Comissão Parlamentar do Mercosul. “A militarização das fronteiras é muito perigosa, estamos começando a ficar imprensados, e acredito que isto seja uma ameaça à nossa segurança”, afirma.
Segundo o deputado, mesmo desconhecendo qualquer legislação que impeça o Paraguai de abrir seu território a forças externas, deveria ter havido uma discussão da questão no âmbito do Mercosul. “Os EUA ganharam a queda de braço contra a resistência de sua presença na Tríplice Fronteira. Não sei como foi o acordo com o Paraguai. Mas com a Colômbia aconteceu que se restringiu a entrada de militares e permitiu-se o acesso livre de civis americanos. Esse civis são todos mercenários, empresas privadas de segurança. Se isso se repetir no Paraguai, as coisas se complicam”.
Já a assessoria do Itamaraty afirmou que, oficialmente, o Brasil não se manifestara sobre o assunto, porque “seria ingerência em assuntos internos de outro país. Nós mesmos temos acordos de exercícios militares conjuntos com os EUA, e do ponto de vista do Itamaraty não há nada a ser comentado”.
O Brasil é um dos poucos países sul-americanos que não contam com bases, guarnições ou pistas de pouso americanas. Uma explicação pode estar no fato de que a história das relações recentes entre militares americanos e brasileiros é a história de uma não-cooperação. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o Brasil não permitiu mais a instalação de bases americanas nem tem participado de manobras conjuntas significativas com os EUA.
Embaixador nega
O embaixador do Paraguai no Brasil, Luis Gonzalez Árias, negou que seu país tenha autorizado a instalação de uma base militar americana permanente no país. Ele afirmou ser especulação a informação publicada na imprensa sobre uma suposta autorização para que os Estados Unidos tivessem uma base permanente para operações de tropas militares no Paraguai, nas proximidades da usina hidrelétrica de Itaipu. “Isso não está em análise”, disse o embaixador ao jornal Folha de S. Paulo ontem (5).
Segundo ele, as autorizações dadas até agora pelo Congresso paraguaio para a operações militares dos EUA no país são temporárias, como ocorre normalmente com missões internacionais de cooperação, até mesmo com o próprio Brasil.
Apesar de não conhecer acordo no Mercosul sobre a necessidade de decisão conjunta sobre uma eventual autorização para base estrangeira permanente, o embaixador considerou que o assunto deveria merecer uma consulta aos países vizinhos, caso estivesse em discussão no Paraguai.
Presença antiga
Há alguns anos, segundo o pesquisador Anibal Miranda, especialista em geopolítica e autor do livro Dossier Paraguay: Los Dueños de Grandes Fortunas, os EUA montaram em Assunção, capital do Paraguai, sua mais poderosa estação de rastreamento de sinais de rádio e espionagem eletrônica na América do Sul. Miranda diz que a estação foi montada pela CIA, durante a ditadura de Alfredo Stroessner, deposto em 1989.
A estação monitorava emissões de rádio em todo o Cone Sul, reproduzindo-as para uso de serviços de inteligência dos diversos países. Segundo Miranda, a estação ainda funciona, no prédio da embaixada americana em Assunção.
“Cordão sanitário”
Os Estados Unidos montaram em território sul-americano e em ilhas próximas, nos últimos cinco anos, um “cordão sanitário” de 20 guarnições militares, divididas entre bases aéreas e de radar. A um custo estimado de US$ 337 milhões, elas abrigam ao todo 1,5 mil soldados. A presença militar americana é notada desde o Caribe ao Chaco paraguaio. Aviões-espiões e caças espalhados pela Amazônia, pelos Andes e pelas Antilhas embasam a nova estratégia. Meses atrás, um avião-espião americano foi surpreendido sobre o spaço aéreo brasileiro, na Amazônia, sobrevoando uma região para a qual não foi autorizado a sobrevoar.
Sob o pretexto de “combater o narcotráfico” a espinha dorsal da nova investida estadunidense em território sul-americano é formada por três bases aéreas: Manta (Equador, a cerca de 320 quilômetros da Colômbia), Rainha Beatrix (Aruba) e Hato (Curaçao). As duas últimas ficam em frente à costa da Venezuela, um dos países que os EUA não controlam políticamente mas que têm grandes reservas de petróleo, um dos motivos da invasão americana do Iraque. Juntas, as três bases contam com 665 militares americanos e consumiram US$ 116 milhões.
Fonte: Diário Vermelho