Negros, palestinos, árabes em geral, judeus, ciganos, quilombolas e indígenas passarão a ter a partir de novembro um plano nacional com políticas públicas direcionadas a eles, que está sendo elaborado pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), a partir de mais de mil propostas apresentadas por representantes desses grupos, num processo que envolveu cerca de 90 mil pessoas. Iniciado por conferências estaduais e municipais e consultas a alguns grupos específicos, como os quilombolas, o processo culminou com a I Conferência Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, realizada em Brasília, no início de julho, da qual participaram cerca de 5 mil pessoas, entre elas 1.136 delegados, e 300 convidados nacionais e internacionais. Considerada um marco histórico na luta desses povos, a realização da conferência, assim como a criação da Seppir foi uma reivindicação da sociedade civil.
Será formado um grupo de trabalho interministerial (GTI), coordenado pela Seppir, para discutir a viabilidades dessas reivindicações. “Cada um dos temas remete diretamente a um ministério ou mais de um, então agora temos que analisar essas propostas à luz dos programas já existentes, muitas delas já vinculam-se a ações que o governo federal já vem realizando, e podem ser incrementadas. Outras serão encaminhadas para a formatação de novos programas. Essa análise tem que estar vinculada ao estabelecimento de metas, a uma leitura em relação à capacidade orçamentária e até de ampliação de orçamento, e a uma distinção entre o que cabe ao Estado e à sociedade civil”, explicou à Agência Carta Maior a ministra Matilde Ribeiro, da Seppir.
As propostas estão relacionadas a várias áreas das políticas públicas, como trabalho, educação, saúde, diversidade cultural, direitos humanos e segurança pública, comunidades remanescentes de quilombos, população indígena, juventude, mulher negra, aspectos da religiosidade de matriz africana, estratégias para o fortalecimento das organizações anti-racismo e políticas internacionais.
Na área do trabalho, por exemplo, há propostas de incremento de ações voltadas à juventude negra e às mulheres negras, grupos que, além da discriminação racial, recebem menos oportunidades de acesso a emprego em função da pouca experiência e do machismo, respectivamente. Também foi levantada a necessidade de intensificação de ações no campo de geração de renda para comunidades remanescentes de quilombo e indígenas.
Na educação, uma das principais discussões girou em torno da reserva de vagas para negros e indígenas no ensino superior público e da implementação da lei 10.639, que obriga o ensino de cultura afro-brasileira nos níveis médio e fundamental, além da necessidade de avançar nas ações no campo da alfabetização de adultos, já que negros, indígenas e ciganos são os mais desfavorecidos no sentido de permanecer nas escolas.
As comunidades quilombolas foram um dos principais assuntos debatidos na Conferência, o que serviu para dar visibilidade à luta desses povos. O próprio presidente Lula tratou desse tema em grande parte do seu discurso de abertura e houve um grupo de trabalho especial para discutir a situação em que se encontram tais grupos. A principal reivindicação que estará no plano nacional é a agilização da regularização fundiária de seus territórios.
No entanto, representantes do movimento quilombola não ficaram satisfeitos com o resultado do processo. “Poderia ter avançado mais, principalmente no que se refere ao desenvolvimento da política nacional para os quilombos, que é urgente e poderia ter aparecido de forma mais forte. A Conferência se preocupou demais em prestar contas do que está fazendo ao invés de discutir a política. É importante analisar o que está sendo feito porque é preciso acertar melhor essas políticas, mas temos que pensar em outras”, afirma a vereadora Givânia Maria da Silva, da comunidade de Conceição das Crioulas, em Pernambuco, que faz parte da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).
O preconceito às religiões de matriz africana e as formas de combatê-lo também foram bastante discutidos. “O estado brasileiro se diz laico na Constituição de 1988, mas algumas posturas deixam dúvida em relação à religiosidade dele. Das medidas mais simples às mais complexas, ele beneficia algumas religiões e se esquece de outras, principalmente as de matriz africana”, acredita Marcos Rezende, coordenador do Coletivo de Entidades Negras da Bahia, que reúne 54 organizações que trabalham com questões relacionadas aos afro-descendentes. Ele cita como exemplo disso o ensino religioso nas escolas públicas, a existência de elementos da religiosidade cristã nas repartições públicas, e o desrespeito à garantia constitucional de que todos os templos religiosos têm imunidade tributária, já que os terreiros de candomblé precisam pagar IPTU.
A área da comunicação, por sua vez, sequer teve um grupo de trabalho oficial, mas comunicadores formaram um grupo alternativo, que também apresentou uma moção com propostas de políticas públicas para a democratização da comunicação, aprovada no plenário. A população negra sofre não só com o racismo na mídia como também com outras violações do direito à comunicação, como a perseguição às rádios comunitárias, das quais participa majoritariamente. Entre as propostas do grupo está a realização de um diagnóstico nacional sobre a situação de exclusão étnica nos meios de comunicação, a necessidade de participação das entidades do movimento negro e da Seppir no GTI que está elaborando a Lei Geral de Comunicação de Massa e a realização de um Seminário Nacional de Comunicação destinado a discussão de políticas de comunicação étnica.
Os representantes indígenas reivindicam a criação de uma secretaria especial com status de ministério, vinculada à Presidência da República, para acompanhar as políticas e ações voltadas às suas populações e os ciganos querem maior visibilidade e exigem adaptações nos sistemas de saúde e educação para a forma de vida desses povos, que mudam constantemente seu local de acampamento.
Estatuto da Igualdade Racial
A urgência na aprovação do Estatuto da Igualdade Racial (PL 3.198/2000), foi uma das propostas retiradas na Conferência e deverá fazer parte do Plano. De autoria do então deputado federal, hoje senador, Paulo Paim (PT-RS), o estatuto apresenta um conjunto de ações afirmativas de responsabilidade do Estado, visando a inclusão da população negra e a garantia de qualidade de vida em todas as áreas das políticas públicas. Entre elas, a implantação de um sistema de cotas aos afro-descendentes no ensino superior e em concursos públicos, o direito de livre exercício dos cultos e religiões de matriz africana, e a criação do Fundo Nacional de Promoção da Igualdade Racial, vinculando receitas orçamentárias da União para efetivar essas políticas. A idéia é que o governo federal faça uma campanha em parceria com a sociedade civil pela aprovação do estatuto, que desde 2002 aguarda votação no plenário da Câmara.
Além de ter sido um momento importante de articulação e formação de redes entre as diferentes organizações e movimentos sociais, o processo também foi fundamental para garantir a permanência da Seppir com status de ministério. Desde junho, uma série de boatos surgidos alimentam a idéia de que isso poderia ocorrer na reforma ministerial. A Conferência serviu para que a sociedade civil legitimasse a importância da existência da Secretaria Seppir – existência de alguma organização de Estado para a promoção da igualdade racial e não só de governo que isso pode acabar a qualquer momento.
“Nas vésperas da Conferência, tive uma audiência com o presidente Lula que me afirmou que não fazia parte dos planos dele nenhuma alteração em relação ao formato dessa secretaria na atual gestão, e isso foi reafirmado pelo próprio presidente na abertura. Em todos os discursos fica reiterada a importância da continuidade da Seppir e do fortalecimento das políticas nessa área. Mas as decisões sobre e reforma estão a cargo do presidente da República, não tenho poder sobre o desfecho dessa questão”, avalia a ministra Matilde Ribeiro.
Relatoria sobre os Direitos dos Afro-descendentes da OEA
Entre os convidados internacionais, participou da I Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial o relator especial sobre os Direitos dos Afro-descendentes e contra a Discriminação Racial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos), Clare Roberts, que aproveitou a ocasião para realizar uma visita oficial ao Brasil.
O país foi o primeiro a receber a nova relatoria especial, criada em fevereiro deste ano, com o objetivo de monitorar o cumprimento dos direitos dos afro-descendentes e o direito à igualdade sem discriminação racial nos estados americanos, avaliar e sugerir políticas nessa área. Até então só existiam relatorias especiais relacionadas a crianças, mulheres, indígenas, pessoas privadas de liberdade, imigrantes, liberdade de expressão e pessoas deslocadas. Essas relatorias permitem à comissão focar seus trabalhos em temáticas específicas.
A relatoria foi criada após muitos anos de pressão da comunidade afro-descendente do hemisfério. O próprio governo brasileiro desempenhou papel central nesse sentido, pois foi um dos propositores dessa medida e se esforçou desde então para que ela fosse efetivada, garantindo, inclusive, recursos financeiros para os trabalhos da relatoria. Junto ao brasileiro Paulo César Pinheiro, Clare Roberts vem defendendo na Comissão de Direitos Humanos da OEA a elaboração de uma Convenção Interamericana contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação e Intolerância, que existe no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), mas não da OEA.
Para Roberts, que também é presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, a Conferência foi um grande acontecimento para promover a tomada de consciência da população em relação às questões de discriminação racial. “Tanto o governo brasileiro quanto organizações não governamentais e a população em geral devem trabalhar em conjunto para complementar essas ações. É importante monitorar o que vai acontecer após a Conferência para que não sejam somente resoluções no papel, mas ações que possam modificar o status da população afro-descendente no Brasil”, diz.
Em sua visita ao Brasil, o relator esteve em Brasília, Salvador e São Paulo, participou de encontros com representantes do governo federal, estaduais e municipais, de ONGs, do movimento negro e do movimento hip hop; escutou relatos e recebeu estudos sobre a situação da população negra no Brasil, com suas reivindicações e denúncias; e visitou comunidades quilombolas, onde constatou as condições críticas em que elas vivem.
“Os problemas que envolvem os negros se diferem de país para país, e as questões no Brasil são mais complexas se comparadas às dos EUA, mas tanto nesses dois países quanto no Caribe, os direitos humanos, econômicos, sociais, e culturais dos afro-descendentes não estão sendo desrespeitados”, conclui Roberts, para quem a relatoria deve ser parceira da sociedade civil, como a voz internacional de seus esforços.
Fonte: Agência Carta Maior