Parlamentares apóiam revisão do processo de privatização da Vale do Rio Doce

No aquecimento do debate eleitoral, tucanos e pefelistas têm trazido novamente à tona críticas sobre a qualidade do gasto público efetuado pelo governo e propostas de diminuição da participação do Estado na economia, visão defendida e aplicada nos oito anos de gestão de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) à frente do Palácio do Planalto. Na contracorrente deste posicionamento, uma decisão da Justiça promete reacender a disputa referente a um dos símbolos do programa de privatizações promovido pelo governo FHC: a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD). A juíza Selene Maria de Almeida, do Tribunal Regional Federal da 1a Região, “ressuscitou” processo originado de diversas ações populares movidas na época da venda da Vale, em 1997, pedindo a anulação da privatização da companhia.
A decisão da juíza – tomada em 20 de outubro de 2005 e publicada apenas no dia 16 de dezembro do ano passado – anula a extinção do processo, sentenciada pelo juiz Francisco de Assis Castro Júnior em 2002, e estipula a retomada do julgamento, estabelecendo a obrigatoriedade de produção de provas sobre o caso e de novos depoimentos das partes envolvidas. Para furar o silêncio acerca do novo capítulo envolvendo uma das maiores companhias mineradoras do mundo, um grupo de congressistas lançou a Frente Parlamentar em Defesa do Patrimônio Público. A primeira ação do grupo será mobilizar o conjunto da sociedade para garantir que a decisão da juíza Selene Maria de Almeida seja mantida e que o julgamento das ações que pedem a revisão da privatização da Vale dê ganho às ações populares que questionam o processo.
Retomado o processo, a frente buscará recuperar os equívocos políticos e o conjunto de irregularidades que teriam permeado a venda da Vale. Para a deputada federal Socorro Gomes (PCdoB-PA), o processo não poderia ter sido validado pela ausência de justificativa sequer para a inserção da CVRD no programa nacional de desestatização (PND) no início do governo FHC. “A argumentação era que a privatização da Vale ajudaria a diminuir a dívida externa, o que não aconteceu, pois os R$ 3,3 bilhões arrecadados com a sua venda não fizeram cócegas na dívida pública brasileira”, salienta. O voto da juíza Selene Maria endossa a posição da deputada, lembrando que o resultado das privatizações rendeu em torno de R$ 60 bilhões, quase o valor da dívida pública líquida brasileira no início do governo de Fernando Henrique Cardoso, mas mesmo com o pagamento dos encargos e com a suposta redução do estoque da dívida em julho de 2000, ela somava R$ 500 bilhões e hoje se aproxima da marca de R$ 1 trilhão.
A deputada critica também a inclusão da Vale no PND a partir da argumentação de que a empresa era ineficiente e deficitária para o Estado. “Desde 1990, a empresa não recebia aporte de recursos públicos e, mesmo assim, ela conseguiu se sustentar obtendo lucro até 1996”, lembra a deputada. Segundo artigo escrito pelo pesquisador César Benjamim na revista “Atenção” em 1997, até a sua privatização, a CVRD recebeu US$ 1,24 bilhão do governo e repassou aos cofres públicos US$ 1,41 bilhão. Em informe na época da venda, a direção da companhia divulgou que “o lucro não distribuído em dividendos ficou retido na empresa para expansão de suas atividades e investimentos, o que gerou aumento de receita do grupo de US$ 198 milhões ao ano no início da década de 1970 para US$ 5,5 bilhões ao ano, representando crescimento médio anual de 13,6%”.
Mas o gancho principal do questionamento judicial que pretende ser retomado pela frente parlamentar seria o baixíssimo valor pelo qual a Vale teria sido vendida. A problema estaria na avaliação feita pela empresa Merrill Lynch, contratada para este serviço e para a formatação da venda. A Merrill Lynch teria usado base de cálculo equivocada ao tomar o preço base das ações da Vale na época, que estavam na casa dos R$ 26, e multiplicaram pelo número de ações vendidas. A empresa foi avaliada em R$ 10 bilhões e a transação, que envolveu 41% das suas ações, foi efetuada pelo valor de R$ 3,3 bilhões.
“A Vale era um complexo industrial com 54 empresas, maior produtora e exportadora de ferro do mundo, com concessão de duas das maiores ferrovias do planeta e hoje vale quase R$ 100 bilhões. Este patrimônio não foi avaliado”, diz a deputada Dra. Clair (PT-PR). “As reservas de minério de ferro foram sub-avaliadas, não foi avaliada a inteligência acumulada da companhia e as mais de 30 empresas coligadas e subsidiárias. O dinheiro pago só dava para comprar os navios que a Vale possuía”, completa a deputada Socorro Gomes.
Para as parlamentares, é preciso reparar este erro histórico não somente pelo fato da venda ter sido feita a preço de banana, mas pela importância estratégica da companhia para o país. A Vale é a maior produtora de minérios de ferro do mundo, com reservas comprovadas de 41 bilhões de toneladas deste tipo de minério, uma das maiores produtoras de ouro e prata e possui 11% das reservas mundiais de bauxita. A companhia possui também 1,8 mil km de ferrovias brasileiras e dispunha à época de sua venda de 580 mil hectares de florestas replantadas, área suficiente para a produção de 400 mil toneladas/ano de celulose.
Hoje a companhia é a empresa que mais contribui para o superávit comercial da balança brasileira. A CVRD é responsável por 16% da movimentação de cargas do Brasil, 65% da movimentação portuária de granéis sólidos e cerca de 39% da movimentação do comércio exterior nacional. Além disso, possui papel fundamental no desenvolvimento regional, totalizando 30% do PIB do estado do Pará. Antes de sua venda, parte de seus rendimentos era destinada a um fundo para fomentar desenvolvimento da região. Atualmente, a única contribuição é o pagamento de royalties para os municípios onde estão localizadas as minas.
Os deputados pretendem também atacar outras irregularidades. A mais visível delas consiste na atuação da empresa Merrill Lynch, responsável pela sub-avaliação da Vale, como acionista, na época, do grupo Anglo American, concorrente direta da própria CVRD. A Merrill Lynch teria repassado informações estratégicas aos compradores meses antes da venda. Além disso, ela teria infringido a legislação pelo fato do grupo Anglo American ter participado do processo e venda através da empresa Projeta Consultoria Financeira S/C LTDA, caracterizando ilegal vínculo entre a organização autora do projeto e um dos licitantes. O processo teria sido marcado por outras irregularidades, como a participação como consultor do Banco Bradesco, que mais tarde viria a se tornar um dos acionistas da companhia. “Foram internacionalizados, de acordo com o TCU, 26 milhões de hectares. No entanto, o Código Penal Militar proíbe a internacionalização de áreas maiores do que dois mil hectares sem passar pelo congresso, o que não aconteceu”, pontua o pesquisador Bautista Vidal.
A venda da Vale também teria cometido ilegalidade por ter tirado do domínio do Estado a gestão sobre minérios de Urânio presentes nas minas da companhia, quando a lei brasileira estabelece que a exploração deste tipo de material é de responsabilidade única da União. “Em uma das missões com pesquisadores detectamos a presença de urânio misturado com outros minérios, mas ninguém tem certeza qual é a quantidade. Só o urânio deveria ter sustado a venda da Vale, pois a pesquisa e o enriquecimento são competências da União”, diz Socorro Gomes. A deputada informa que pretende entrar com este questionamento com base nas suspeitas de que o urânio esteja sendo vendido junto com cobre e ouro.

Histórico

Logo após a venda da companhia, várias pessoas entraram com ações populares nos mais variados estados do país questionando diversos aspectos do processo. Todas as ações foram reunidas e enviadas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao tribunal de Belém (PA), considerado o foro competente por atender a região onde está situada a Vale. Em 2002, o processo que reunia as mais de 100 ações recebeu sentença do juiz Francisco de Assis Castro Júnior. A decisão se amparou na determinação constitucional que não eleva a exploração de recursos minerais, com exceção de materiais nucleares, à condição de matérias de segurança nacional ou interesse coletivo, não sendo, portanto, necessária a sua manutenção sob a alçada do Estado e sendo “perfeitamente possível a privatização”. O juiz decidiu então por extinguir o processo desqualificando os autores das ações e alegando que não havia fundamento para rever um fato consumado. “Tem-se uma situação de fato consolidada que não é mais passível de modificações”.
A virada se deu quando o Ministério Público resolveu assumir a autoria do processo, entrando com recurso junto à TRF da 1a região, localizado em Brasília. Julgado pela juíza Selene Maria de Almeida, o recurso foi aceito e a sentença determinou a realização de uma perícia no local para reavaliar o valor de venda da Vale e a obrigação do julgamento de mérito do processo, o que hão havia acontecido antes. Agora os autores das ações populares poderão apresentar as provas coletadas e os réus, diversos integrantes do governo à época como o então presidente Fernando Henrique Cardoso, terão de apresentar sua defesa. “A questão relativa à avaliação, por óbvio, não pode ser reduzida tese de situação fática consolidada pelo decurso do tempo. Há que se ter presente que as ações populares têm por objetivo a recomposição do patrimônio público lesado. Nesse sentido, as alegações relativas aos critérios de avaliação do patrimônio da CVRD ganham relevo, pois, se corretas, eventual subavaliação ou não avaliação terá levado a um gigantesco prejuízo ao patrimônio público”, afirma o voto da juíza.

Próximos passos

Frente a este quadro, a Frente Parlamentar em Defesa do Patrimônio Público pretende agora articular diversos atores no Parlamento e na sociedade para pressionar no julgamento das ações que pedem a revisão do processo de privatização da Vale, ou pelo menos garantir o ressarcimento da população pela avaliação incorreta e pelos prejuízos causados. “Quereremos fazer uma mobilização nacional para fazer valer a decisão da juíza Selene. Queremos trabalhar em conjunto com a CPI das privatizações, estamos criando comitês parlamentares e da sociedade civil em todos os estados”, informa Dra. Clair.
Segundo a deputada, a postura do governo neste processo é fundamental, pois a União pode passar de ré à apoiadora, na facilitação do ressarcimento dos prejuízos, na correção dos erros da privatização e até na reconversão da companhia em empresa estatal.

Fonte: Agência Carta Maior