Em entrevista dada à rádio CBN de São Paulo, nesta terça, o ex-presidente afirma que debater o processo das privatizações é “prender o Brasil num passado que já está morto”. Ele afirmou que não houve erro em vender a Vale do Rio Doce e as telecomunicações.
O debate acerca das privatizações ocorridas durante o governo federal de Fernando Henrique e o de Geraldo Alckmin em São Paulo vem se mostrando um dos temas centrais deste segundo turno. A candidatura Lula tem denunciado o que chama de “dilapidação do patrimônio público” promovida pelos tucanos e levanta os riscos para o país diante de uma possível eleição de Alckmin, como a privatização de empresas públicas como a Petrobras e o Banco do Brasil. O PSDB tem vindo a público insistentemente para negar este risco. No último debate entre os presidenciáveis, assumiu publicamente o compromisso de não vender especificamente essas duas estatais.
Nesta terça-feira (17), no entanto, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em entrevista à emissora de rádio CBN, deixou clara a visão que seu partido tem dos processos de privatização ocorridos no país – sinalizando a compreensão dos tucanos sobre o assunto. FHC não defendeu diretamente as privatizações do Banco do Brasil e da Petrobrás. Disse, inclusive, que era contrário à privatização desta última. Mas não teve nenhum constrangimento em comemorar o que aconteceu com a Companhia Vale do Rio Doce e com a telefonia do país “graças”, segundo ele, às privatizações.
“A Companhia Vale do Rio Doce é hoje uma das maiores do mundo. Ela não tinha recursos, por causa do endividamento do Brasil ela não podia aumentar o seu investimento nem seu endividamento; por causa das regras de licitação, sendo uma empresa pública, não podia ter agilidade. Olha o Conselho da Vale naquela época. Não quero entrar em nomes de pessoas, mas quem eram os que mandavam na Vale? Políticos… Bom, e os resultados, escassos. O que aconteceu? Foi privatizada. Diziam: “vai cair na mão dos estrangeiros”. Mentira. Hoje quem é dono da Vale são os funcionários do Banco do Brasil. A Previ mais o Bradesco. Hoje ela multiplicou seu valor por 10. Não porque valesse 10 quando foi vendida. Ninguém queria comprar. Foi uma dificuldade pra alguém comprar. Hoje multiplicou o seu valor por 10, está comprando empresas do exterior, é uma das maiores do mundo e paga de impostos ao governo federal muito mais do que jamais rendeu ao governo enquanto estava na mão do governo. Qual é o erro? Eu não entendo”, disse Fernando Henrique.
Os erros que o ex-presidente não entende, apontados por diferentes setores organizados – e não somente pela candidatura Lula – são tantos e de natureza tão diversas que há um ano, depois de movidas dezenas de ações populares contra a privatização da empresa, que acusam a União, o BNDES e o então presidente Fernando Henrique de crime de lesa-pátria, a 5ª Turma do TRF (Tribunal Regional Federal), de Brasília, decidiu que a privatização da Vale deveria passar por uma perícia técnica.
Uma das ações é de autoria da deputada federal Dra. Clair, do PT do Paraná, coordenadora do Movimento Nacional em Defesa do Patrimônio Público. O instrumento questiona o Decreto 1510, de FHC, que incluiu a Vale do Rio Doce no Programa Nacional de Desestatização. Questiona ainda os vícios do edital – que omitia, por exemplo, informações sobre o potencial econômico da empresa, fornecidas somente a alguns privilegiados –, os critérios e o valor de avaliação da empresa.
Em maio de 1997, a companhia foi a leilão e teve 41,37% de suas ações vendidas por R$ 3,34 bilhões. À época, a Vale era um complexo industrial com 54 empresas, maior produtora e exportadora de ferro do mundo, com concessão de duas das maiores ferrovias do planeta. Algumas avaliações deste patrimônio apontam para um valor de até US$ 1,5 trilhão.
A decisão judicial permitiu a retomada em todo o país da campanha pela reestatização da Vale, trazendo de volta para a população o debate sobre a privatização que é considerada uma das mais lesivas ao patrimônio público nacional. Em 1997, 70% dos brasileiros se disseram contra a privatização da Vale. Mas o governo dos tucanos fez questão de não ouvir. Hoje a companhia vale cerca de R$ 100 bilhões. Somente o lucro de seus dois últimos anos representa cinco vezes o valor pela qual a empresa foi vendida.
Há outros motivos para que se afirme que houve uma sub-avaliação do valor da empresa. Em 8 de maio de 1995, a direção da Vale informou a Securities and Exchange Comission que suas reservas lavráveis de minério de ferro em Minas Gerais totalizavam 7.918 bilhões de toneladas. No edital de privatização, porém, constou apenas 1,4 bilhão de toneladas. Em relação às minas de ferro da Serra de Carajás, a Vale informou que suas reservas eram de 4.970 bilhões de toneladas. O edital de privatização subtraiu 3,17 bilhões de toneladas, apresentando a reserva com apenas 1,8 bilhão de toneladas.
Mas os questionamentos ao processo não param na questão do valor da venda. O resultado do leilão causou surpresa. O consórcio Brasil, liderado pela Companhia Siderúrgica Nacional, de Benjamin Steinbruch, adquiriu o controle acionário da Vale. No entanto, o consórcio favorito era o Valecom, liderado pelo Grupo Votorantim, de Antônio Ermírio de Moraes, que contava com a participação da Anglo American, do Centrus (fundo de pensão do BC), do Sistel (fundo de pensão da Telebrás), da Caemi-Mitsui e da Japão-Brasil Participação (formado por 12 corporações).
Segundo os partidos que na época estavam na oposição, o governo FHC interveio no processo, impedindo que os demais fundos de pensão de estatais aderissem ao consórcio de Antônio Ermírio e optassem pelo consórcio de Steinbruch. Assim, juntos, CSN, Previ (o fundo de pensão do Bando do Brasil), Petros (fundo de pensão da Petrobrás), Funcef (fundo de pensão da CEF), Funcesp (fundo de pensão dos empregados da Cesp), Opportunity e Nations Bank (fundo) arremataram a companhia.
Em novembro de 1998, foram divulgadas gravações clandestinas de telefonemas na sede do BNDES entre autoridades do governo sobre o leilão da Telebrás, ocorrido meses antes. As fitas indicam o interesse do ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, e do presidente do BNDES, André Lara Resende, para que o Opportunity vencesse um dos leilões. Nas conversas, o próprio presidente Fernando Henrique Cardoso permitiu que seu nome fosse usado para pressionar a Previ a entrar no consórcio liderado pelo Banco Opportunity.
No processo de privatização da Vale, empresas que haviam participado da avaliação da empresa tornaram-se depois associados na composição acionária da empresa privatizada, colocando todo o processo sob judice.
A defesa do governo federal para entregar a companhia foi a de que a privatização diminuiria o déficit fiscal brasileiro, que com a privatização o governo liberaria mais recursos e teria maior capacidade gerencial para a área social e que, com os recursos das privatizações, o governo brasileiro reduziria a divida do país. Alguns fatores, no entanto, foram “esquecidos”, como o impacto da privatização na classe trabalhadora. Em 1996, a Vale tinha 15.483 trabalhadores e, em 2000, esse quadro havia sido reduzido para 11.442. Mais de 4.000 mil trabalhadores ficaram desempregados.
O PSDB continua, no entanto, não vendo nada de errado com o processo.
Em entrevista à Folha de S. Paulo, Luiz Carlos Mendonça de Barros, ministro das Comunicações no governo Fernando Henrique entre abril e novembro de 1998, declarou: “ainda bem que a Vale foi privatizada”. Para ele, se a Vale hoje exporta US$ 6 bilhões ao ano e é uma das três maiores empresas mineradoras do mundo, é porque “está liberta de amarras burocráticas, de influência política em suas decisões operacionais e de investimento, de utilização de dinheiro da empresa em assuntos que não lhe dizem respeito e de ser instrumento de política externa como ocorre com a Petrobras na Bolívia”. “No caso da Vale, há vários benefícios oriundos da privatização para a melhora de vida dos brasileiros. Só que esses efeitos não são de fácil percepção”, tentou explicar o tucano.
Fernando Henrique nem tentou discutir o mérito da opinião contrária da maioria da população à privatização da Vale. Afirmou na entrevista da manhã desta terça que “funcionou” e que “estamos perdendo tempo”. “Está havendo uma discussão arcaica se deve haver privatização ou não. É claro que já houve privatização. Taí, funcionou! (…) A discussão não cabe. É arcaico!”, protestou FHC.
Quem dirá se é arcaico discutir as privatizações, no entanto, são os eleitores. Segundo balanço feito pelo BNDES, de 1991 a 2001 o Estado brasileiro privatizou 68 empresas públicas federais, o que correspondia a 75% de todo o patrimônio nacional – um processo cujo debate, para o PSDB, não cabe.
Fonte: Agência Carta Maior