Por Marcela Cornelli
Sindicalistas e o líder da oposição, Evo Morales, acusam embaixador norte-americano de interferir na crise para evitar queda do presidente Sánchez de Lozada. Assessores militares dos EUA ajudariam a coordenar repressão à rebelião popular.
O secretário executivo da Central Operária Boliviana (COB), Jaime Solares, denunciou na última quinta-feira (dia 16/10) que o governo dos Estados Unidos está intervindo na crise da Bolívia com o objetivo de manter no cargo o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, cuja renúncia vem sendo pedida por grandes manifestações populares que, reprimidas pelo governo, já resultarm em mais de 80 mortos. Solares pediu para que o embaixador David Greenlee abandone o país, por ter violado a soberania boliviana. O sindicalista disse que o embaixador deveria deixar a Bolívia “por sua nefasta atividade intervencionista e pelo apoio descarado de Washington ao governante, fornecendo munições e outros meios usados na sangrenta repressão”. O líder do Movimento ao Socialismo (MAS), Evo Morales, também condenou a intervenção norte-americana.
O dirigente da Federação de Trabalhadores da Imprensa de La Paz, Arsenio Alvarez, denunciou que o embaixador David Greenlee teve uma reunião dias atrás com os diretores de diversos meios de comunicação, quando os teria advertido que seu país não reconhecerá nenhum presidente que não seja Sánchez de Lozada. Para Alvarez, a declaração de Greenlee constitui uma ameaça inadmissível e uma intromissão condenável na soberania da Bolívia. O movimento de revolta popular afirma que não quer o rompimento da ordem constitucional nem do regime de democracia representativa, defendendo que o vice-presidente, Carlos Mesa, assuma a Presidência. Mesa rompeu com Sánchez de Lozada por discordar da violenta repressão contra os manifestantes.
Militares dos EUA
A intervenção também foi denunciada por Roberto de la Cruz, líder da central sindical do município de El Alto – um dos principais focos dos protestos e onde houve o maior número e mortos. Segundo ele, o governo dos EUA está empenhado em manter, a qualquer preço, Sánchez de Lozada no poder. A embaixada norte-americana estaria pressionando os líderes dos partidos da base de sustentação do governo, o Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR) e a Nova Força Republicana (NFR), para que continuem apoiando o atual governo. O semanário Pulso denunciou esta semana que militares norte-americanos estão participando diretamente do comando das operações de repressão aos protestos. O deputado Paulo Bravo afirmou que um avião carregado de armas, procedente de Miami, chegou ao país dias atrás.
As denúncias de intervenção norte-americana na crise boliviana ocorrem no momento em que cresce o isolamento político do presidente Sánchez de Lozada. Na quinta-feira, o empresário Samuel Doria Medina disse que a comunidade internacional apoiará a posse do vice Carlos Mesa, caso fique comprovada a inviabilidade do governo Lozada.
“Ya va a caer”, gritam os manifestantes
Ontem, a capital La Paz viveu um dos maiores protestos populares da sua história. Milhares de pessoas partiram dos bairros da periferia para a região central da cidade. Cantavam slogans contra Sánchez de Lozada: “el matagente”, “el gringo maldito”, “ya va a caer, ya va a caer”, deixando claro o objetivo central da mobilização – a saber, a queda do atual presidente. Antes de partir para o centro de La Paz, os manifestantes fizeram uma concentração na região de El Alto. Segundo lideranças do movimento, a polícia passou a noite explodindo bombas e dando tiros de metralhadora para o ar, com o objetivo de intimidar e amedrontar a população da área. Uma multidão desceu dos 4.000 metros de altura de El Alto até os 3.600 da sede do governo, um trajeto de mais de 12 quilômetros. Em La Paz, os pobres estão acima dos ricos, pelo menos geograficamente, vivendo na região mais alta da cidade. Cerca de um milhão de pessoas moram nessa área.
Na noite anterior, Sánchez de Lozada comprometeu-se, em pronunciamento em cadeia nacional de televisão, a convocar um referendo nacional de consulta sobre a política do gás e dos combustíveis – estopim da crise – e convocar uma Assembléia Nacional Constituinte após 2007. O presidente admitiu rever a proposta de exportação do gás boliviano para os EUA, via portos chilenos, mas sua proposta não chegou a entusiasmar. Carlos Calvo, dirigente da Confederação de Empresários da Bolívia, classificou-a de “irrelevante”. Jaime Solares, da COB, disse que se tratava de uma manobra para tentar enganar o movimento popular. “Malku” Felipe Quispe, da Confederação Sindical Única de Camponeses, e Evo Morales, dirigente do MAS, também rechaçaram a proposta presidencial. “Não vamos dialogar nada com ninguém. Sánchez de Lozada é o embaixador dos Estados”, resumiu Jaime Solares.
La Paz permaneceu paralisada ontem, em greve pelo quarto dia consecutivo, sem transporte, sem aulas e sem comércio. Nas portas de mercados e igrejas, cartazes exigem a saída do presidente, que perde apoio até no meio empresarial. “O presidente deve abrir os olhos”, diz Carlos Calvo, um dos principais líderes empresariais do país. Segundo ele, a única coisa da qual os empresários não abrem mão é a manutenção da institucionalidade, admitindo a possibilidade da renúncia de Sánchez de Lozada.
Em jogo, o futuro da Alca
Segundo análise de Raúl Zibechi, da agência Alai-AmLatina, o governo Sánchez de Lozada já teria caído se não fosse o apoio político e militar do governo dos EUA, que considera que a sua queda fortalecerá o bloco Brasil-Argentina-Venezuela e enfraquecerá ainda mais a concretização da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Após o fracasso da reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Cancún, Washington “tenta desesperadamente estabilizar uma aliança de contenção dos grandes países da América do Sul”, escreve Zibechi. Até agora, acrescenta o analista, conseguiu formar uma cunha que inclui Colômbia, Equador e Peru. Perder um aliado como Sánchez de Lozada enfraqueceria essa posição. A Bolívia tem a segunda reserva de gás do continente e, apesar de ser uma economia debilitada, pode desequilibrar a balança geopolítica da região. “Por tudo isso, o futuro da Alca e dos planos imperiais está sendo jogado nas ruas de La Paz e em cada um dos bairros pobres que rodeiam a cidade”, conclui Zibechi.
Lozada acusa o presidente venezuelano Hugo Chávez de estar incentivando e patrocinando os protestos. Chávez rejeitou a acusação e defendeu que o destino da Bolívia deve ser decidido pelos bolivianos. Os governos do Brasil e da Argentina, por sua vez, adotam uma posição cautelosa diante da crise, defendendo que ela deve ser resolvida dentro dos marcos da institucionalidade e da ordem democrática, sem interferências externas. Até então considerada por Washington um ator secundário no tabuleiro geopolítico do continente, a Bolívia ocupa agora um papel central na definição do ordenamento político da América Latina.
Fonte: Agência Carta Maior