Após quase duas décadas de discussão, finalmente foi aprovada a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. O ato se deu na semana passada, durante a primeira sessão do recém-criado Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, na Suíça. O documento estabelece princípios e diretrizes a serem adotados pelos Estados-membro para a elaboração de políticas indígenas e os limites da atuação dos governos em ações que atinjam essas populações. Apesar de não ser considerada ideal, a declaração traz avanços significativos para os indígenas do mundo todo, por estabelecer novas bases na relação entre os Estados e tais povos, reconhecendo o direito à diferença, à multiculturalidade, à autonomia e ao território deles, entre outras coisas.
Na votação final, foram trinta votos a favor, dez abstenções, cinco ausências e dois votos contra, do Canadá e da Rússia. O documento ainda precisa passar pela Assembléia Geral da ONU, mas as chances de isso não ocorrer são remotas. Ainda que a declaração não tenha o mesmo peso de uma convenção, que se vincula à lei dos países que a adotam, tem um peso político importante e pode servir de base para a discussão da Convenção Internacional dos Povos Indígenas da ONU.
Segundo Marcos Terena, presidente do Comitê Inter-Tribal, que participou do grupo de trabalho que elaborou o texto do documento, a declaração é importante porque assegura os direitos internacionais dos povos indígenas na ONU, que é formada por Estados nacionais, e consolida a participação deles nesse órgão. “Não atingimos as expectativas dos nossos sonhos, mas demarcamos um passo muito importante dos direitos indígenas no marco das Nações Unidas, que vai servir de referência para a reformulação da ONU em relação aos direitos humanos, que atualmente só assegura os direitos dos indivíduos. Ela mostra que é preciso também debater os direitos coletivos”, acrescenta Terena.
Um avanço importante trazido pela declaração apontado pelos indígenas é justamente o reconhecimento dos direitos coletivos dos povos indígenas, que dizem respeito ao direito a políticas de educação e de saúde específicas, a manter seu patrimônio cultural, ao território que a comunidade ocupa etc. Os Estados têm grande dificuldade de reconhecer esses direitos considerados fundamentais pelos indígenas, já que significa admitir a diferença entre povos numa mesma nação.
“Acreditamos que a declaração vai auxiliar muito as leis internas de cada país a respeitar de fato os direitos da população indígena, como cidadãos e seres humanos, mas acima de tudo a respeitar os direitos específicos, à coletividade, à diferença, à identidade e à autonomia, para o usufruto dos seus territórios, com o objetivo de viver neles como espaço sagrado para sua sobrevivência física e cultural”, avalia o dirigente da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Jecinaldo Barbosa Cabral, do povo Saterê-Mawé.
Situação triste
“É um grande desafio a ser implementado nos países, em especial no Brasil, onde já temos reconhecidos vários direitos na Constituição de 1988 e na Convenção 169 da OIT, e ainda vemos uma situação muito triste, principalmente em relação aos nossos territórios. Queremos que o governo brasileiro assuma para si a responsabilidade de colocar em prática a declaração para que os direitos básicos da população indígena sejam respeitados e a pauta indígena não seja colocada em último plano, como ocorre hoje. O movimento indígena vai utilizar a declaração como forma de pressão e controle social”, completa o coordenador geral da Coiab. Segundo ele, a adesão do Brasil é um sinal importante do governo federal, que não tem dado a devida atenção à população indígena.
Para a socióloga Azelene Kaingáng, presidente do Warã Instituto Indígena Brasileiro, uma das maiores conquistas trazidas pela declaração é o princípio de que qualquer ação em territórios indígenas ou que afete esses povos deve ter o consentimento deles. “De acordo com a declaração, para construir a usina hidrelétrica de Belo Monte, por exemplo, seria necessário consultar os povos indígenas do Xingu, que teriam direito a veto. Quem decide isso hoje é o próprio Estado, em nome da soberania e do interesse nacional, independentemente do que pensam as pessoas atingidas. A declaração tira a soberania total dos Estados nacionais sobre os recursos nos territórios indígenas”, afirma Azelene, única representante dos indígenas brasileiros presente à sessão do Conselho de Direitos Humanos que aprovou a declaração.
De acordo com o vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Saulo Feitosa, “avanços na esfera internacional repercutem de forma positiva na luta dos indígenas no Brasil, que é sensível a isso. Mostra que os Estados nacionais avançaram na compreensão dos direitos desses povos de manter a multiculturalidade e fazer políticas específicas para eles. Apesar de termos no Brasil uma Constituição bastante avançada, isso consolida as conquistas asseguradas na esfera nacional. Ela reforça a questão da autonomia, da territorialidade e do auto-reconhecimento. A auto determinação não está em pauta no movimento indígena brasileiro, eles reivindicam autonomia”, afirma.
Entraves para a aprovação
A declaração enfrentou quase vinte anos de debate antes de ser adotada pela ONU porque os Estados nacionais não aceitavam ou temiam diversos princípios defendidos por indígenas de diferentes lugares. Eles precisaram, por exemplo, convencer os representantes dos países com assento no Conselho de Direitos Humanos que o reconhecimento da diferença entre povos de uma mesma nação não é uma ameaça à soberania nacional, mas, pelo contrário, consolida as democracias internas de cada país. Os Estados também temiam que o princípio da auto-determinação dos povos indígenas pudesse incentivá-los a lutar pela independência de seus territórios, mas foram persuadidos de que isso aconteceria independentemente da aprovação da declaração. O documento precisou incluir salvaguardas aos Estados em relação à gestão dos recursos naturais e à soberania territorial para que o texto fosse aprovado.
Um dos pontos que atravancou a negociação nos últimos anos foi que Estados-membro queriam colocar um limite no exercício dos direitos coletivos. No caso da demarcação dos territórios indígenas, eles queriam deixar claro que também existem os direitos de fazendeiros, madeireiros e posseiros. Os indígenas, no entanto, consideram que isso já faz parte da legislação interna de cada país, que garante, por exemplo, o direito à propriedade e ao contraditório, e defenderam que não era necessário explicitar isso na declaração sobre os direitos dessas comunidades tradicionais.
A preocupação dos Estados quanto aos recursos naturais nos territórios desses povos foi grande durante esse processo. Eles temiam que o petróleo, o urânio ou outros recursos minerais estratégicos presentes nas terras indígenas, que hoje são considerados patrimônio nacional, passassem a ser dos índios, o que afetaria a política nacional desses países. A declaração, no entanto, reconhece que esses recursos pertencem ao Estado em que se localiza o território indígena.
“É um absurdo a ONU ter que votar a Declaração dos Povos Indígenas, enquanto pouco antes a Convenção sobre desaparecimentos forçados foi adotada pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU por consenso. A comunidade internacional se divide quando se tratam dos direitos dos povos indígenas, ela não os considera como direitos humanos”, lamenta Azelene.
Papel do Brasil
Nesse processo, houve uma grande evolução nas posições adotadas pelo Brasil e no papel desempenhado pelo país. No início das discussões, quando a diplomacia brasileira ainda estava ligada aos militares, eles não dialogavam com esses povos e sequer queriam que os indígenas falassem no grupo de trabalho. O país era duramente contrário à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
Aos poucos esse quadro foi se alterando e de cinco anos para cá o Itamaraty mudou completamente sua relação com o movimento, tornando-se um de seus principais aliados na elaboração do texto. Atualmente, antes de alguns encontros internacionais, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) convida lideranças desses povos para discutir a posição a ser adotada pelo Brasil em assuntos que envolvem tal população. Nos últimos anos, o Brasil passou inclusive a ter um papel de liderança em relação à América Latina.
“Mudou a consciência do país em nível internacional em relação a esses povos, apesar de continuar a situação interna de violações dos direitos indígenas. Nas últimas três sessões, o Brasil liderou momentos históricos na garantia desses direitos, apoiando tudo que propúnhamos. Em janeiro, a posição do país era uma das melhores”, recorda a presidente do Warã Instituto Indígena Brasileiro, que vem acompanhando de perto as discussões nos últimos três anos.
No entanto, nesta última sessão, quando foi aprovada a declaração, o Brasil ameaçou votar contra o documento, por causa da pressão de países como Austrália, Nova Zelândia, Canadá e EUA, sob a alegação de que ele ameaçava a soberania nacional e precisava de mais tempo para ser discutido.
Representantes indígenas da América Latina enviaram uma carta ao Itamaraty, pressionando-o para que o Brasil apoiasse a adoção da declaração. A reação teve o efeito esperado e o governo recuou em relação a sua nova posição. Revertendo o voto do Brasil, os indígenas conseguiram reverter o de outros Estados da região, já que o país preside o Grupo de Países da América Latina e Caribe da ONU (Grulac), com exceção da posição da Argentina, que preferiu se abster.
Segundo Terena, presidente do Comitê Inter-Tribal, o Brasil ofereceu grande contribuição ao debate e ao documento final em relação à territorialidade dos povos indígenas. Enquanto em países como Colômbia, Paraguai, Equador e Bolívia, onde a maior parte da população é indígena, o direito desses povos ao território não é reconhecido, no Brasil, o movimento indígena conseguiu que fosse incluído na Constituição de 1988 o direito à demarcação do espaço territorial dessa população. O país conseguiu demonstrar que é possível assegurar o território étnico dos índios sem ferir a soberania nacional e garantiu a presença desse princípio no documento.
Fonte: Agência Carta Maior