Desde que o PT decidiu em seu congresso nacional apoiar as mobilizações populares pela anulação da privatização da Companhia Vale do Rio Doce, o Palácio do Planalto vem evitando assumir posição sobre o tema. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva é pressionado pela imprensa conservadora, que parece querer arrancar dele um compromisso público contra a anulação, mas tem se limitado a dizer que “partido é partido e governo é governo” e que este assunto não está na pauta governamental.
A delicada questão da venda da Vale do Rio Doce, no entanto, voltará a bater na porta do presidente da República em 25 de setembro. Nesse dia, dirigentes de entidades representativas dos movimentos sociais como CUT, MST, UNE e Conlutas, entre outras, estarão em Brasília para entregar a Lula um documento com os resultados do plebiscito popular sobre o tema, que foi realizado entre os dias 1º e 9 de setembro em todo o Brasil.
Além de indagar se o votante era favorável à anulação da privatização da Vale, o plebiscito pediu a opinião da população sobre temas como o pagamento dos juros das dívidas interna e externa, o preço das tarifas de energia e a Reforma da Previdência. A consulta popular foi o ponto alto da 13ª edição do Grito dos Excluídos, tradicional ato político organizado pelos movimentos sociais e realizado no feriado de Sete de Setembro. Sob o slogan “Isto não Vale! Queremos participação no destino da nação!”, o Grito este ano reuniu centenas de milhares de manifestantes em várias cidades do país.
A contagem dos votos somente será iniciada na semana que vem, mas o balanço preliminar da participação popular este ano indica um sucesso tão grande quanto aquele obtido nos dois outros plebiscitos já organizados pelos movimentos sociais. Os anteriores trataram da Alca e da utilização da base aeronáutica de Alcântara pelos Estados Unidos, e reuniram mais de dez milhões de votantes: “Nossa expectativa é que um total de mais de cem mil urnas chegue para apuração”, afirma Luiz Bassegio, que é membro da Secretaria Continental do Grito dos Excluídos.
Desde 1º de setembro, militantes das 64 organizações envolvidas no plebiscito instalaram urnas para receber o voto popular em duas mil localidades espalhadas pelo Brasil. Urnas foram colocadas em faculdades, sindicatos, igrejas, câmaras de vereadores e até mesmo em feiras e praças. Apenas no dia do feriado, segundo dados preliminares obtidos pela Secretaria Continental, 17 mil novas urnas foram instaladas nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Ceará.
Segundo a organização do Grito dos Excluídos, este ano as manifestações mais marcantes aconteceram em São Paulo (150 mil em todo o estado), Bahia (30 mil em Salvador e 70 mil no interior) e Pará (50 mil em Belém). Em Aparecida do Norte, no Vale do Paraíba, dezenas de milhares de pessoas participaram da 20ª Romaria dos Trabalhadores e, num gesto simbólico, exibiram cartões vermelhos para a privatização da Vale, para a Alca, para as dívidas interna e externa, para a Reforma da Previdência, para as altas tarifas de energia e para o FMI.
Leilão repleto de irregularidades
Com patrimônio líquido estimado na época em R$ 10 bilhões (ou R$ 40 bilhões, se considerado seu potencial de exploração mineral), a Companhia Vale do Rio Doce foi vendida em 1997, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, por um terço de seu valor (R$ 3,4 bilhões).
O montante gasto na compra foi recuperado com sobras pelos investidores em apenas três anos, já que o lucro líquido acumulado da Vale entre 1998 e 2000 foi de R$ 4,4 bilhões. Dez anos após sua privatização, a ex-estatal tem lucros acumulados que ultrapassam os R$ 50 bilhões e um patrimônio hoje calculado em cerca de R$ 100 bilhões.
Além da venda claramente subfaturada, outras irregularidades dão base jurídica à luta daqueles que pretendem anular a privatização da Vale. A principal delas é a ilegalidade cometida por empresas que misturaram os papéis de avaliador e investidor durante o processo de leilão da empresa. Entidades privadas como o banco brasileiro Bradesco e a empresa de consultoria norte-americana Merril Lynch tomaram parte no consórcio de avaliação que estipulou um preço muito abaixo do mercado para a Vale e, mais tarde, tornaram-se acionistas e passaram a se beneficiar com os rápidos lucros obtidos com a empresa privatizada.
Nas mãos do STJ
Um dos objetivos do plebiscito sobre a privatização da Vale do Rio Doce é pressionar os juízes da 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) a tomarem rapidamente posição sobre um recurso apresentado pela atual direção da empresa para impedir o julgamento do mérito de 69 ações populares, iniciadas na 1ª Vara Federal de Belém, que pedem a anulação do leilão. Até o momento, somente dois dos oito juízes aptos a votar _ Luiz Fux e José Delgado _ já divulgaram seus votos, ambos favoráveis à direção da Vale. O julgamento permanece paralisado desde junho, quando o ministro João Otávio Noronha pediu vista do processo.
O imbróglio jurídico começou às vésperas do leilão da Vale, em maio de 1997, quando o Supremo Tribunal Federal (STF), francamente favorável à privatização da empresa, decidiu reunir todas as ações que pediam a anulação do processo de venda e encaminhá-las para a Justiça Federal no Pará. Em Belém, o juiz Francisco Gardês Júnior determinou em primeira instância o arquivamento das ações, o que gerou revolta nos movimentos sociais.
Após muita mobilização, o advogado Eloá dos Santos Cruz, autor de uma das ações populares, conseguiu em 2001 que os processos fossem remetidos ao Tribunal Regional Federal (TRF) em Brasília. Em 2005, a desembargadora Selene Maria de Almeida devolveu todos os processos à Justiça Federal do Pará e determinou que fossem realizadas perícias nos documentos de privatização da Vale. A direção da empresa recorreu então ao STJ, onde o processo se encontra parado desde então.
Além das 69 ações que são objeto desta disputa, outras 38 aguardam a apreciação da Justiça, num total de 107 medidas judiciais, entre ações populares e ações civis públicas, que pedem a anulação do processo de venda e privatização da empresa. Mesmo que o Palácio do Planalto continue lavando as mãos, as inúmeras irregularidades cometidas há dez anos alimentam a esperança de quem quer ver a Vale de novo como uma empresa estatal: “Nós ainda vamos conseguir reverter esse quadro criminoso de entrega do patrimônio e das riquezas do solo e do sub-solo brasileiros”, aposta Luiz Bassegio.
Fonte: Agência Carta Maior