Em dezembro de 2004, quando entrou em vigor a Emenda Constitucional nº 45, a Justiça trabalhista comemorou a ampliação de seu poder com a criação do dispositivo que dava a ela competência para julgar as relações de trabalho, e não somente as relações de emprego, regidas pela CLT. Mas o vice-presidente do TST, Ronaldo Lopes Leal, próximo ministro a assumir a presidência da corte, analisa os efeitos da reforma do Judiciário na contramão de grande parte da magistratura. Na visão de Lopes Leal, as novas competências da Justiça do Trabalho, que em tese representariam maior prestígio ao sistema, vão gerar uma série de conflitos de competência que acabarão por retardar os julgamentos. Para ele, determinados tipos de ações poderão ficar por anos tramitando no Judiciário simplesmente para que se defina qual Justiça julgará a questão – a comum ou a trabalhista. Isso porque, conforme o ministro, o texto que estabeleceu as novas competências da Justiça trabalhista, é amplo e pouco claro, e por mais que seja lido e discutido, as dúvidas permanecem. Em entrevista ao Valor, o ministro defendeu uma interpretação restrita do texto constitucional.
Valor: Como a Justiça do Trabalho está se preparando para assumir suas novas competências? O TST tem noção do aumento no número de processos?
Ronaldo Lopes Leal: Esse é um tema difícil de falar porque eu sempre fui contrário à ampliação da competência da Justiça do Trabalho. Eu acho que não devemos ficar seduzidos por um poder corporativo, ou seja, por um prestígio maior. Nós temos uma obrigação constitucional de atender o trabalhador brasileiro. Fomos criado para isso e não para outra coisa. Se, por exemplo, entendêssemos que toda e qualquer relação de trabalho fosse da competência da Justiça do Trabalho, um médico chegaria à sua secretária e diria: veja essa lista de inadimplentes que não pagaram meus honorários e vamos colocá-los na Justiça do Trabalho. A Justiça do trabalho foi criada para defender o médico em relação a consumidores de medicina? Jamais. A expressão “relação de trabalho” não é nova na Constituição Federal e foi inserida agora no artigo 114. Ela existe em diversos pontos da Constituição, mas sempre com sentido de relação de emprego, de CLT. Portanto, eu sou mais favorável à interpretação restritiva.
Valor: Mas esse tipo de ação com certeza vai chegar à Justiça do Trabalho.
Lopes Leal: Já de início podemos dizer que quando constitucionalmente estabelecemos competências, essa competência tem que ser claríssima. Se não é clara vai dar margem a conflitos de competência, que demoram anos em uma dicussão sobre qual é o órgão competente para julgar isso ou aquilo. Se você ler o artigo 114 da Constituição, vai se convencer que é um enigma: decifra-me ou devora-te. Eu não consigo interpretar, nem ninguém. Eu já estive em vários congressos, já fiz palestras e ninguém chega a uma conclusão. Ora, se ninguém chega a uma conclusão é porque o texto foi feito por pessoas que nos deixaram numa situação dificílima com nossos jurisdicionados e potenciais jurisdicionados. Nós não estamos sabendo a essa altura o que nos compete e o que não nos compete. Como é que a Justiça do Trabalho pode estar se preparando se nós não sabemos quais são as nossas competências?
Valor: Então a reforma já começou com problemas?
Lopes Leal: Vamos ter seguramente conflitos negativos e positivos de competência. E é por isso que é muito bom estarmos alertando para a ambigüidade do texto constitucional desde logo.
Valor: E o que poderia ser feito?
Lopes Leal: Não sei. Nessa altura temos um texto constitucional.
Valor: Uma nova proposta de alteração?
Lopes Leal: Seria o ideal. Não tenho nenhuma dúvida de que a Justiça do Trabalho foi criada para dar tutela ao trabalhador, que é hipossuficiente. Se nos desviarmos para outras coisas, apenas voltados para a maravilha do prestígio da Justiça do Trabalho, nós estaremos faltando com o nosso dever histórico. E estaremos valorizando não o nosso jurisdicionado, mas nos valorizando. Eu costumo dizer assim: 10% dos trabalhadores lesados vão à Justiça do Trabalho. Imagine se 100% viessem à Justiça do Trabalho. O colapso seria muito maior do que o que existe atualmente. Seria insuperável, mas ainda assim muita gente defendeu essa ampliação da competência. Estamos aqui para servir à população e não para nos servir, nos prestigiar. “O artigo 114 da Constituição é um enigma: decifra-me ou devora-te. Eu não consigo interpretar, nem ninguém”.
Valor: Além de alterar a emenda constitucional, existe alguma outra alternativa para o problema?
Lopes Leal: Nós temos algumas esperanças pela frente. Por exemplo, a defesa coletiva de direitos que não têm nada a ver com dissídios coletivos, ou seja, defender coletivamente direitos individuais. Esse é o caminho para que, ao invés de 10%, tenhamos 100% na Justiça trabalhista. O sindicato da categoria ou o Ministério Público é que poderiam colocar essas coisas em juízo, abrangendo um grande número de trabalhadores, todos de uma empresa ou de uma categoria.
Valor: Mas isso não podia ser feito antes da reforma?
Lopes Leal: Podia, pela substituição processual. Só que como a substituição estava orientada no TST, o tribunal sempre a viu com maus olhos esse tipo de defesa coletiva. O motivo eu não sei. Mas na administração do Francisco Fausto, ex-presidente do TST, nós cancelamos o Enunciado nº 310 e agora entendemos que a substituição se faz em relação a direitos individuais homogêneos, ou seja, tudo que é homogêneo pode ser objeto de um pleito único, beneficiando toda uma categoria. Esse é um caminho que beneficia o trabalhador.
Valor: Com as mudanças trazidas pela reforma vai ocorrer um inchaço da Justiça do Trabalho. O número de juízes vai aumentar?
Lopes Leal: Sim. Não há previsão nenhuma ainda. Está até se propondo um texto para o controle concentrado da interpretação da lei trabalhista, como uma ação direta de inconstitucionalidade, mas sem questionar constitucionalidade. Foi uma sugestão do Nelson Jobim, presidente do STF. A proposta foi encaminhada para o Congresso Nacional e está entre os textos da reforma infraconstitucional a serem votados. Com isso, evitaríamos uma multiplicidade de conflitos na primeira instância da Justiça trabalhista. Não haveria efeito vinculativo, mas muitos juízes seguiriam, e isso evitaria muitos conflitos. Quando ocorrem conflitos sobre a interpretação da lei fica o trabalhador sem saber o que fazer. Uma solução desse tipo talvez resolvesse um pouco.
Valor: E qual será o papel do Supremo?
Lopes Leal: Quem vai interpretar por último a reforma é o Supremo. O bom seria que as entidades que tenham competência entrassem com Adins para o Supremo interpretar essas coisas todas. Nos ajudaria muito porque não temos competência para interpretar questões constitucionais. Valor: O senhor foi corregedor da Justiça trabalhista durante dois anos e visitou todos os TRTs do país. Qual a conclusão tirada desta experiência? Lopes Leal: Os tribunais são ilhas independentes. De um modo geral, quando chega um novo presidente, ele vem com todas as suas idéias de como administrar um tribunal, do que fazer num tribunal, e aí o tribunal vai ser a imagem e semelhança daquele presidente. Na verdade isso é uma instituição que deveria correr de uma maneira homogênea para que tivesse a mesma concepção. Isso agora vai ser mitigado por um órgão criado pela Emenda Constitucional nº 45, o Conselho Superior da Justiça do Trabalho. Quando fiz as correições, fiz um levantamento geral de todos os tribunais. Tentamos exportar para outros as coisas boas, mas isso é bastante complicado. Com o conselho não vai ser complicado, vai ter que ser feito. O conselho vem para uniformizar tudo e estabelecer padrões para a Justiça do Trabalho de todo o país.
Fonte: Jornal Valor Econômico