Os 40 anos da morte de Ernesto Guevara Lynch de la Serna, a se completarem no próximo dia 9, dão ensejo a uma nova temporada de caça ao mito Che Guevara por parte da imprensa reacionária, começando por Veja, que acaba de produzir uma das matérias-de-capa mais tendenciosas de sua trajetória.
“Veja conversou com historiadores, biógrafos, antigos companheiros de Che na guerrilha e no governo cubano na tentativa de entender como o rosto de um apologista da violência, voluntarioso e autoritário, foi parar no biquíni de Gisele Bündchen, no braço de Maradona, na barriga de Mike Tyson, em pôsteres e camisetas”, afirma a revista, numa admissão involuntária de que não praticou jornalismo, mas, tão-somente, produziu uma peça de propaganda anticomunista, mais apropriada para os tempos da guerra fria do que para a época atual, quando já se pode olhar de forma desapaixonada e analítica para os acontecimentos dos anos de chumbo.
Não houve, em momento algum, a intenção de se fazer justiça ao homem e dimensionar o mito. A avaliação negativa precedeu e orientou a garimpagem dos elementos comprobatórios. Tratou-se apenas de coletar, em todo o planeta, quaisquer informações, boatos, deturpações, afirmações invejosas, difamações, calúnias e frases soltas que pudessem ser utilizadas na montagem de uma furibunda catalinária contra o personagem histórico Ernesto Guevara, com o propósito assumido de se demonstrar que o mito Che Guevara seria uma farsa.
Assim, por exemplo, a Veja faz um verdadeiro contorcionismo retórico para tentar tornar crível que, ao ser preso, o comandante guerrilheiro teria dito: “Não disparem. Sou Che. Valho mais vivo do que morto”. Ora, uma frase tão discrepante de tudo que se conhece sobre a personalidade de Guevara jamais poderá ser levada a sério tendo como única fonte a palavra de quem posou como seu captor, um capitão do Exército boliviano (na verdade, eram oficiais estadunidenses que comandavam a caçada).
É tão inverossímil e pouco confiável quanto a “sei quando perco” atribuída a Carlos Lamarca, também capturado com vida e abatido como um animal pelas forças repressivas.
E são simplesmente risíveis as lágrimas de crocodilo que a Veja derrama sobre o túmulo dos “49 jovens inexperientes recrutas que faziam o serviço militar obrigatório na Bolívia” e morreram perseguindo os guerrilheiros. Além de combater um inimigo que tinha esmagadora superioridade de forças e incluía combatentes de elite da maior potência militar do planeta, Guevara ainda deveria ordenar a seus comandados que fizessem uma cuidadosa triagem dos alvos, só disparando contra oficiais…
É o mesmo raciocínio tortuoso que a extrema-direita utiliza para tentar fazer crer que a morte de seus dois únicos e involuntários mártires (Mário Kozel Filho e Alberto Mendes Jr.) tenha tanto peso quanto a de quatro centenas de idealistas que arriscaram conscientemente a vida e a liberdade na resistência à tirania, confrontando a ditadura mais brutal que o Brasil conheceu.
Típica também – e não por acaso – da retórica das viúvas da ditadura é esta afirmação da Veja sobre o legado de Guevara: “No rastro de suas concepções de revolução pela revolução, a América Latina foi lançada em um banho de sangue e uma onda de destruição ainda não inteiramente avaliada e, pior, não totalmente assentada. O mito em torno de Che constitui-se numa muralha que impediu até agora a correta observação de alguns dos mais desastrosos eventos da história contemporânea das Américas”.
Assim, a onda revolucionária que se avolumou na América Latina durante as décadas de 1960 e 1970 teria como causa “as concepções de revolução pela revolução” de Guevara e não a miséria, a degradação e o despotismo a que eram submetidos seus povos. E a responsabilidade pelos banhos de sangue com que as várias ditaduras sufocaram anseios de liberdade e justiça social caberia às vítimas, não aos carrascos.
É o que a propaganda enganosa dos sites fascistas martela dia e noite, tentando desmentir o veredicto definitivo da História sobre os Médicis e Pinochets que protagonizaram “alguns dos mais desastrosos eventos da história contemporânea das Américas”.
Não existe muralha nenhuma impedindo a correta observação desses episódios, tanto que ela já foi feita pelos historiadores mais conceituados e por braços do Estado brasileiro como as comissões de Anistia e de Mortos e Desaparecidos Políticos. Há, isto sim, a relutância dos verdugos, de seus cúmplices e de seus seguidores, em aceitarem a verdade histórica indiscutível.
E a matéria-de-capa da Veja não passa de mais um exercício do jus esperneandi a que se entregam os que têm esqueletos no armário e os que anseiam por uma recaída totalitária, com os eventos desastrosos e os banhos de sangue correspondentes.
*Celso Lungaretti, 56 anos, é jornalista em São Paulo, com longa atuação em redações e na área de comunicação corporativa, e escritor. Escreveu Náufrago da utopia (Geração Editorial, 2005). Mais dele em http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/.
Fonte: Sinopse eletrônica do Sintrajud (Congresso em Foco)