Desde a “guerra contra a privatização da água”, em 2000, a Bolívia entrou em um processo que pode ser caracterizado como “sublevação permanente”, em que o Estado perdeu capacidade de governar com legitimidade e o movimento popular gera e desenvolve formas cada vez mais amplas de disputa de hegemonia política. Essa etapa sucede a de hegemonia neoliberal, em que, sob pretexto de combater o déficit público e a inflação, as elites bolivianas – orientadas pelo ex-guru neoliberal Jeffrey Sachs – desmantelaram a economia mineira do país e, com ela, o movimento sindical, que havia conseguido dispor de forte capacidade de veto, mas sem ter logrado se constituir em alternativa de poder, inclusive porque estava dissociado do movimento camponês, com seu forte componente indígena.
Durante cerca de 15 anos, um novo bloco de forças se apoderou do Estado boliviano, composto por frações empresariais vinculadas ao mercado mundial, partidos políticos tradicionais, investidores estrangeiros e organismos internacionais. Impuseram suas formas de direção do Estado, com reformas de primeira e segunda geração, ao estilo do Banco Mundial, com privatizações, com abertura das fronteiras da economia boliviana, com as conhecidas promessas de modernização e globalização.
É esse o bloco de forças que passou a ser fortemente questionado desde então, com a recomposição do movimento popular, pela primeira vez na história do país, centrado no movimento indígena. “(…) hoje os movimentos sociais com maior poder de interpelação ao ordenamento político são de base social indígena emergentes das zonas agrárias bloqueadas ou marginalizadas dos processos de modernização econômica impulsionados desde o Estado. Os aymaras do altiplano, os cocaleiros dos Yungai e do Chapare, os ayllus de Potosí e Sucre, os indígenas do oriente deslocaram no protagonismo social aos sindicatos operários e às organizações populares urbanas.” (“Crisis de Estado y sublevaciones plebeyas en Bolívia”, Álvaro García Lineira, mimeo).
Este movimento, surgido da luta vitoriosa contra a privatização da água, foi incorporando cada vez mais reivindicações de caráter nacional, como a luta pela cobrança de 50% de taxa na exportação do gás, por uma Assembléia Nacional Constituinte, resistência às políticas de erradicação da folha de coca e a luta contra a Alca. Esse movimento é a reação a uma crise estrutural, de fundo, de “longa duração” da economia boliviana, incapaz de se industrializar e desenvolver um mercado interno de consumo popular. Continuando a ser economias primário-exportadoras, seguem dependentes dos preços dos produtos de exportação e principalmente de interesses externos – aos quais o atual presidente Carlos Mesa apela, para dizer que as reivindicações populares, relativas à água e aos hidrocarburos, é incompatível com os compromissos internacionais do país.
Com a crise de legitimidade do Estado e do sistema tradicional de partidos políticos, artificialmente construído sobre uma sociedade majoritamente excluída, foram surgindo novas formas de organização e de expressão política dos povos indígenas, gerando dois campos políticos contrapostos. “Em regiões como Chapara, Yungas e norte de Potosí, a institucionalidade de comunidades se acha sobreposta não apenas à organização partidária, mas também à própria institucionalidade estatal, na medida em que prefeitos, corregedores e subprefeitos estão subordinados de fato às federações camponesas.” (Idem) “Trata-se de uma institucionalidade baseada em normas, procedimentos e culturas políticas tradicionais, corporativas não-liberais que está questionando a centenária simulação histórica de uma modernidade e liberalidade política estatal de texto e de instituição que nem sequer é acatada pelas elites proponentes…” (Idem)
A crise de legitimidade do Estado e das elites bolivianas se funda também no fracasso as promessas da globalização e da modernização, com o retorno a formas de extração da mais valia absoluta e a um incremento da informalidade (igual a precariedade) laboral, que subiu de 55% para 68% em 20 anos. Calcula-se que hoje ¾ dos bolivianos não tem contrato formal de trabalho. A privatização, ao invés de ampliar o mercado interno, produziu a maior perda de renda para o país nos últimos 50 anos e a internacionalização das parcas poupanças sociais.
É nessas condições que a Bolívia entrou no que podemos caracterizar como crise de hegemonia, em que as formas tradicionais de representação política perderam legitimidade e se enfrentam com formas novas, embrionárias, de poder alternativo. A partir de temas como a água, a terra, o gás, a Assembléia Constituinte, foi se gestando uma plataforma que vai permitindo que os setores que originalmente levantavam essas reivindicações consigam incorporar a novos setores sociais e a ganhar espaço de disputa política pelo poder.
Esse pólo tem – na visão de Álvaro García – três componentes simultâneos: uma base étnico-cultural, uma base classista e uma base regional. A direita polariza com temáticas regionais – a separação da região de Santa Cruz, por exemplo. Produziu-se uma dissociação entre o poderio econômico, situado na região oriental da Bolívia e o poderio político dos movimentos sociais e cívicos, situado no ocidente. O poder econômico se deslocou do ocidente para o oriente (com os investimentos estrangeiros nos hidrocarbonetos, nos serviços na agroindústria), mas o poder sociopolítico de mobilização se reforçou no ocidente. Essa polarização regional expressa também uma separação e um enfrentamento étnico e de classes claramente diferenciados: empresários no oriente (Santa Cruz, Beni, Tarija), com poder econômico, e indígenas e setores plebeus no ocidente (La Paz, Cochabamba, Potosí, Oruro).
No momento atual, depois da derrubada de Sanchez de Losada, seu vice, Carlos Mesa, se distanciou dele para assumir a Presidência, inicialmente se comprometendo com a convocação de novas eleições, de uma Assembléia Constituinte e de uma consulta popular sobre a lei de hidrocarbonetos. Fez esta, de forma confusa, para impedir um pronunciamento popular claro, mas renegou as outras duas, tentando ficar no cargo até as eleições de 2006. Pressionado pelas mobilizações populares sobre a lei de hidrocarbonetos, sobre a expulsão da empresa estrangeira que tenta explorar privadamente a água, de repúdio à Alca e a favor da Assembléia Constituinte, Mesa entregou seu pedido de renúncia ao Parlamento, seguro que este o rejeitará e lhe devolverá o poder com mais prerrogativas. Que é o que ele quer, por suas declarações, quando diz que já não será possível que gente coloque dinamite na própria cintura e exija direitos.
Desta vez as diferenças internas ao movimento popular parecem ter passado a segundo plano, fazendo com que a Bolívia possa ter o privilégio de contar com um grande movimento social e ao mesmo tempo com um forte partido político – o MAS (Movimento ao Socialismo), de Evo Morales –, ao contrário do Equador ou da Argentina. O MAS não deseja a renúncia, que jogaria o país em uma situação explosiva, e quer que Mesa termine seu mandato e convoque eleições para a Presidenciais e para uma Assembléia Constituinte.
Portanto, se há alguma posição golpista no quadro boliviano atual, ela vem de Carlos Mesa, e não do movimento opositor. Qualquer que seja seu desenlace atual, a situação de sublevação permanente da Bolívia seguirá, até que estejam plenamente maduras as condições para que o novo bloco social e político de forças possa dar uma solução de esquerda à crise desse país.
Fonte: Agência Carta Maior