No dia 04 de abril de 2000, há exatamente cinco anos portanto, foi instituída a “Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)”. Era uma grave mentira oficial. Com a preciosa “colaboração” da imprensa, os marqueteiros do governo federal venderam uma falsa imagem da LRF, manipulando a opinião pública com ostensivas campanhas sobre os “esforços” para combater a corrupção e sanear as finanças públicas. Na verdade, foi montada uma farsa pela equipe do governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) para cumprir à risca a agenda de compromissos com os credores internacionais e o capital financeiro.
Aos que não leram a lei, ou se deixaram iludir com a propaganda oficial, parecia uma iniciativa louvável e necessária à maturidade administrativa do país. Mas, aos olhos atentos, era uma perigosa peça que desvia a atenção do verdadeiro propósito de serviço irrestrito ao pagamento de juros e amortização da dívida e o decorrente congelamento dos gastos sociais. O governo federal insistiu no discurso de que a lei estava a serviço da austeridade fiscal e da moralidade pública. No entanto, a LRF não dispõe sequer de um artigo que combata a corrupção. Não se busca a eficiência e a eficácia dos gastos públicos, mas sim o combate ao déficit e a manutenção da relação entre dívida pública e Produto Interno Bruto (PIB).
Código Penal
A LRF dissimula os reais objetivos, responsabilizando prefeitos e governadores pela sangria do déficit público pelo “excesso” de gastos. Mas quem são os responsáveis pela gastança desenfreada, que sacrificaram o orçamento público? As combalidas prefeituras e governos estaduais ou a política de permissividade e liberalidade com os gastos financeiros? É essa a essência da LRF: tratar de forma assimétrica e hierarquizada os gastos públicos. De um lado, limita, restringe e condiciona as despesas não financeiras, especialmente as sociais. De outro, mão aberta e garantia absoluta às despesas financeiras. O objetivo central da LRF nada mais é do que criar um ambiente propício para a produção de superávits primários (receitas menos despesas, excetuando juros), resguardando o pagamento do serviço da dívida com o sistema financeiro nacional e internacional.
Para tanto, enquadra no Código Penal prefeitos e governadores que não cumprirem as metas fiscais impostas, inaugurando um capítulo absurdo na história: a criminalização da gestão pública. Por isso, foi aprovada a nova lei penal (Lei 10.028/2000, conexa à LRF). O curioso é que para casos de negligência ou desvios de dinheiro público, a lei não prevê punições. A LRF não visa condenar a corrupção, a improbidade administrativa e a falta de planejamento. Ademais, a LRF viola a Constituição e agride os princípios fundamentais do pacto federativo ao interferir na autonomia de Estados e municípios, obrigando-os a cumprir metas impostas que atendem unicamente ao ajuste fiscal.
Espinha dorsal
O artigo 35 da lei proíbe o financiamento de um ente federativo a qualquer outro, não permitindo as operações de crédito entre as cidades e os órgãos estaduais e autarquias, engessando, assim, as condições de empréstimos atuais. O acordo entre partes é sumariamente violado por meio da imposição de uma lei complementar. O impacto é arrasador: os Estados estão simplesmente impedidos de repassar mais de R$ 2 bilhões aos municípios brasileiros. A LRF impede, na prática, a ampliação de despesas com pessoal e gastos com a manutenção ou melhoramento dos serviços públicos, ao exigir que essas despesas só possam ser acrescidas mediante aumento da carga tributária, mas deixando inteiramente livres os gastos financeiros.
A espinha dorsal da LRF, que se apóia no congelamento dos gastos sociais, expõe outro grande absurdo. Mesmo com dinheiro em caixa, os governantes não têm autonomia para fazer valer seus compromissos diante da população. Sob o tacão do pagamento irrestrito de juros e amortização da dívida, os artigos 9º e 31 também penalizam a sociedade. A prioridade dada aos compromissos financeiros governamentais é constatada pelo mecanismo da limitação automática de empenhos em caso de desobediência das metas fiscais que ameacem a liquidez ou o pagamento do serviço da dívida. Nesse caso, os novos empenhos com as demais despesas ficam obstruídos, enquanto não se restabelecer a normalidade das “metas”.
Cerco fechado
Esses cortes automáticos nas despesas não-financeiras são mantidos mesmo face à queda ocasional da receita tributária — ainda que decorrente de um desastre natural — ou à elevação unilateral da taxa de juros. Ao contrário do rígido controle sobre as despesas não financeiras, dá folga confortável ao mercado financeiro e ao Banco Central (BC). Prova disso é a transferência automática dos prejuízos do BC para o Tesouro Nacional. Assim, as ações do BC — seja na contratação de empréstimos externos, na fixação de juros da dívida pública, no “socorro” ao sistema financeiro — estão livres de qualquer restrição orçamentária.
O cerco fechado a Estados e municípios nos quesitos de autonomia e gastos públicos dá a exata medida do autoritarismo da LRF. Outra característica importante da lei, é que ela parece ter sido editada para ser cumprida pelos Estados e municípios, mas não pela União, nos seus aspectos mais relevantes. É interessante notar que os demonstrativos determinados pela LRF servem apenas para elucidar a situação financeira do ente público, sua solvência e capacidade de pagamento. Não servem para o cidadão controlar a eficácia dos gastos sociais ou com a máquina administrativa. Ou seja: a “melhora” na transparência serve mais para os eventuais credores do erário do que para o cidadão.
Bola de neve
As primeiras iniciativas de criação da LRF apareceram no segundo semestre de 1998, a partir da eclosão da crise cambial que terminou com a assinatura do acordo com o FMI, em dezembro do mesmo ano, e com a desvalorização do Real em janeiro de 1999. A dívida pública havia registrado um enorme crescimento, impulsionada principalmente pelas altas taxas de juros. Quase desprezível foi a influência dos gastos públicos não-financeiros sobre o volume da dívida pública, que se agigantou simplesmente pela “rolagem” e pela incorporação dos elevados juros. A dívida, portanto, é fruto dos custos financeiros das políticas monetária e, especialmente, cambial, adotadas pelo Plano Real.
A necessidade de estabilizar e deter o crescimento em “bola de neve” da dívida pública fez o governo FHC patrocinar a edição de uma lei que limitasse os gastos públicos de forma draconiana, com o objetivo confesso de gerar recursos para financiar os custos financeiros, diminuindo a “rolagem”. Esse objetivo em relação à dívida está claramente afirmado na mensagem com a qual o então presidente da República enviou o projeto da LRF ao Congresso no início de 1999. Mas apesar de ter estabelecido essas regras para dar sustentação fiscal à dívida pública, e apesar da mudança no regime cambial, manteve sem mudança o cerne da política econômica que gerou tão gigantesca dívida: a vulnerabilidade externa, a baixa taxa de crescimento e a volatilidade das taxas de juros. Lamentavelmente, esta política persiste no governo Lula.
Fonte: Diário Vermelho, com informações de artigo do
deputado Sérgio Miranda (PCdoB-MG), publicado na revista Princípios nº61