Ao anunciar a reestatização dos setores de energia e telefonia em seu país, o presidente venezuelano Hugo Chávez cumpre o que promete desde seu primeiro mandato: enterrar o neoliberalismo na Venezuela. O núcleo duro dessa diretriz é formado principalmente pelas privatizações e pelo alto endividamento financeiro.
As empresas na mira oficial são a CANTV (cujas acionistas são a Verizon Communications e a Telefônica) e a Caracas Electricity (controlada pela AES). É bom lembrar que a AES, controladora da Eletropaulo, é a mesma que deu um calote de R$ 600 milhões no BNDES há três anos. Lá como cá, as privatizações se traduzem em tarifas elevadas, subsídios estatais e serviço deficiente.
Com o anúncio, o mandatário venezuelano despertou a ira dos mercados, do governo dos Estados Unidos, dos monopólios da mídia e da direita em geral. No Brasil, não faltaram editoriais a denunciar “A escalada autocrática de Chávez”, como fez o jornal “O Estado de S. Paulo”.
A democracia, segundo este raciocínio, está ameaçada quando se investe contra o mercado e não contra as pessoas. Nenhum jornal dá tamanho destaque às restrições à liberdade de imprensa existentes, por exemplo, na Colômbia. Lá, após permanecer encarcerado por 52 dias, foi libertado na segunda-feira (8), sem culpa formal, o correspondente da rede Telesur, Fredy Muñoz. Também não se falou em autoritarismo quando o governo mexicano reprimiu com violência a rebelião popular em Oaxaca, no sul do país, nos últimos meses do ano passado.
Leis habilitantes
Miriam Leitão, a sempre previsível comentarista econômica da TV Globo, afirmou no “Bom-Dia, Brasil” que “o presidente segue os caudilhos latino-americanos e exibe sua cara de retrocesso. Prejudica toda a região ao mostrar a existência de uma terra sem leis”.
Ao contrário do que diz a comentarista, a Venezuela tem leis mais detalhadas que vários países do mundo. Quando aconteceram as farras das privatizações, nos anos 1990, atropelando constituições e normas legais, a analista nada protestou.
Chávez vale-se de uma prerrogativa constitucional, as Leis Habilitantes. Não é uma invenção dele. Já existia algo similar na Carta anterior, de 1961, com a possibilidade de o presidente “Ditar medidas extraordinárias em matéria econômica ou financeira quando assim o requeira o interesse público e haja sido autorizado para tal por leis especiais” As Leis Habilitantes, invocadas por Chávez, estão no artigo 203 da atual Carta:
“São leis habilitantes aquelas sancionadas pela Assembléia Nacional por três quintas partes de seus integrantes, a fim de estabelecer as diretrizes, propósitos e marco das matérias que se delegam ao Presidente ou Presidenta da República, com classificação e valor de lei. As leis habilitantes devem fixar prazos de sua vigência”.
Ou seja, o presidente solicita ao Congresso autorização específica para normatizar uma matéria, com prazo determinado. O Congresso pode aceitar ou não. É algo muito mais democrático do que as Medidas Provisórias brasileiras, para as quais o presidente não precisa de autorização alguma. Se procurasse se informar, talvez Miriam Leitão fosse mais exata em seus comentários.
Roteiro lógico
Chávez segue um roteiro lógico: por anos buscou ampliar sua legitimidade através de mudanças políticas e só agora volta-se com vigor para a economia. Em seus mandatos anteriores – foram dois, entre 1998 e 2006 – , buscou alterações institucionais que ampliassem os direitos democráticos da cidadania, impedissem a privatização da Petróleos de Venezuela (PDVSA), garantissem a distribuição de terras públicas à população e criasse uma série de medidas emergenciais para o combate à pobreza, perfiladas numa série de Missões sociais. Todas essas medidas, de certa forma, foram sintetizadas na elaboração de uma nova Constituição, em 1999, anunciada logo no discurso de posse presidencial, em janeiro de 1998. Deixou a economia quase intocada.
Vencedor de inúmeras batalhas no governo – incluindo o golpe e a sabotagem petroleira de 2002 – o líder venezuelano agora deixa de lado a moderação que até aqui pautou sua política econômica. Com uma legitimidade que ultrapassa em muito as fronteiras de seu país e líder incontestável da onda antiliberal no continente, ele vê novamente as nuvens ameaçadoras lançarem-se contra seu governo. Não há novidade nisso. Assim aconteceu quando o argentino Nestor Kirchner renegociou a dívida pública e reestatizou o serviço de águas de Buenos Aires e quando o boliviano Evo Morales nacionalizou as riquezas do subsolo. Agora a bolsa de Caracas despenca quase 19 pontos, o dólar eleva-se e surge uma ameaça de fuga de capitais do país.
Nos casos argentino e boliviano, as profecias viraram fumaça. “Tudo pode acontecer, inclusive nada”, ensinava o Barão de Itararé (1895-1971), o maior humorista brasileiro da primeira metade do século. E nada aconteceu. Chávez só saberá o que lhe aguarda se mantiver o pé na porta, ao invés de buscar, como é o caso de Lula, uma inatingível confiança dos mercados.
Começa uma nova fase para o governo venezuelano e para a América Latina. Chávez, juntamente com Kirchner e Evo Morales, mostra ser possível buscar sair do neoliberalismo e não apenas criar políticas sociais compensatórias para seguir com “mais do mesmo”.
As catacumbas da Guerra Fria
Uma nota de rodapé. Retrocesso é o mínimo que se pode dizer da nomeação do sr. Antonio de Aguiar Patriota para a embaixada brasileira em Washington. Atual subsecretário-geral de Assuntos Políticos do Ministério das Relações Exteriores, ele concedeu uma interessante entrevista na página da Radiobrás na internet. Na oportunidade, o diplomata enfiou o pé na jaca, ao ser perguntado sobre “uma eventual transição de poder em Cuba”:
“Considero que, possivelmente, haja um papel, sim, a ser desempenhado pelo Brasil na busca de uma transição para a democracia que seja a mais tranqüila e sem turbulências possível e tenho certeza de que o governo norte-americano terá muito interesse em ouvir as nossas ponderações e análises. É um tema que possivelmente, sim, estará entrando na nossa agenda quando a situação assim determinar”.
O rumo que Cuba ou qualquer outro país tomar deve ser prerrogativa do povo deste país. Não pode ser negociado em Washington. Patriota, que parece recém-saído das catacumbas da Guerra Fria, é a personificação exata de uma charge genial de Jaguar, publicada no “Correio da Manhã”, em setembro de 1964. Nela, um personagem diz a outro: “Ouvi dizer que o Roberto Campos vai ser o próximo embaixador americano no Brasil”. O nome poderia ser mudado para Antonio Patriota, que o sentido seria o mesmo.
Fonte: Agência Carta Maior (Gilberto Marigoni)