A semana em que o Brasil comemorou 117 anos de abolição da escravatura foi marcada em todo o país por ações de combate ao trabalho escravo moderno, que ainda atinge mais de 25 mil pessoas, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT). A OIT lançou aqui no Brasil um relatório global descrevendo o quadro mundial de exploração do trabalho forçado (leia matéria “Mais de 12 milhões são vítimas de trabalho forçado no mundo”). Nesta sexta, a Justiça condenou fazendeiros alagoanos e ordenou o pagamento da maior indenização por emprego de mão de obra escrava no país (leia matéria “Sai a maior condenação por trabalho escravo no país”). E o governo brasileiro, citado no estudo internacional da OIT como exemplo no combate à prática, precisou reafirmar seu compromisso com o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, lançado em março de 2003 e ainda um desafio a ser colocado em prática na sua integralidade (leia matéria “Elogiado pela OIT, Brasil ainda peca no combate à prática”).
Nesta quinta-feira (12), numa cerimônia que reuniu muita gente importante em Brasília, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) divulgaram um programa que pretende, até dezembro de 2006, via as políticas públicas vigentes para a reforma agrária, realizar um enfrentamento mais direto nas regiões de aliciamento e emprego do trabalho escravo. Na prática, trata-se de priorizar políticas como o financiamento da produção agropecuária familiar, a assistência técnica e extensão rural, o reordenamento fundiário e a fiscalização cadastral de imóveis em municípios e regiões já conhecidos como problemáticos neste sentido. Não há nada de muito inovador no programa, mas a expectativa é a de que estes instrumentos possam se articular em prol da erradicação do trabalho escravo e contribuir para o conjunto de ações que o governo Lula está desenvolvendo para atingir este objetivo.
“O MDA e o Incra assumem o compromisso de concentrar as ações em áreas onde os aliciamentos ocorrem de forma mais intensiva, bem como onde ocorre a escravidão propriamente dita. O objetivo deste projeto é a reinserção do trabalhador mais vulnerável am uma atividade digna, é a sua reinserção na cadeia produtiva , em programas de crédito, de profissionalização, acesso à terra”, explicou o ministro Miguel Rossetto, do MDA. “O governo tem uma responsabilidade institucional direta na erradicação deste crime. Trabalhamos na perspectiva de somar forças com os ministros Nilmário Miranda [Secretaria Especial de Direitos Humanos] e Berzoini [Ministério do Trabalho e Emprego], e com a OIT para fazer o cerco ao trabalho escravo”, disse.
O “somar forças” a que Rossetto se refere significa colocar as políticas de reforma agrária, que certamente contribuirão no combate à escravidão moderna, no mesmo compasso e ritmo das demais ações que o governo vem desenvolvendo. Entre elas, destacam-se a intensificação das fiscalizações, que somente em 2003 e 2004 resgataram mais de sete mil trabalhadores; a divulgação pelo MTE das chamadas “listas sujas”, contendo as pessoas físicas e jurídicas condenadas administrativamente por exploração de trabalho escravo; a criação, no âmbito da Justiça do Trabalho, de Varas Itinerantes, que têm se mostrado um eficaz instrumento de inibição ao aliciamento; a criação de uma força-tarefa do Ministério Público Federal (MPT), que ajuizou 118 pessoas entre março de 2003 e junho de 2004; as ações civis públicas, ações civis coletivas pleiteando dano moral e termos de ajustamento de conduta que vêm sendo empregados depois que foi criada a Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo no âmbito do MPT; e o estabelecimento da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), composta por representantes do governo, de empregadores, de trabalhadores e da sociedade para monitorar a implantação do Plano Nacional.
Estratégia de ação
Segundo o programa do MDA/Incra, a ação de prevenção e erradicação ao trabalho escravo é, sobretudo, uma ação de oferta de oportunidades de emprego e renda nas localidades de origem dos trabalhadores escravizados. Segundo o Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os indicadores sociais nos municípios de onde mais se originam trabalhadores escravos são os mais baixos possíveis. Em Marabá (PA), por exemplo, o percentual de pessoas com renda per capta inferior a R$37,75 ultrapassa os 20%. Em Chapadinha (MA), mais da metade da população local vive nessas condições. O mesmo se repete em municípios onde houve um maior número de resgates. Em Santana do Araguaia e Cumaru do Norte, ambos no Pará, um terço das pessoas tem renda per capta inferior a R$37,75.
Portanto, além de incrementar a desapropriação para fins de reforma agrária de imóveis rurais nessas regiões onde seja detectado descumprimento da função social trabalhista, o governo pretende agir na prevenção ao aliciamento. O Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), que tem como objetivo ofertar, por meio do financiamento da atividade agropecuária familiar, os recursos necessários para as operações de custeio e investimento, será uma das principais armas neste sentido. São beneficiários do Pronaf os produtores rurais, remanescentes de quilombos, populações de pescadores, extrativistas, ribeirinhos e indígenas que sejam proprietários, posseiros, arrendatários, parceiros ou concessionários da reforma agrária, e que tenham no trabalho familiar a base da exploração do estabelecimento.
Por meio de uma ação articulada com parceiros que atuam nos estados de origem dos trabalhadores aliciados, pretende-se divulgar as linhas financiáveis e formas de acesso ao Pronaf. Como primeiro passo, será elaborada uma carta aos Sindicatos de Trabalhadores Rurais desses municípios e, depois, serão desenvolvidas atividades de disseminação. Segundo o MDA, o crédito rural está presente na maioria dos 10 municípios de onde mais se originam trabalhadores escravos e dos 10 com maior número de resgates. Nada impede, no entanto, que a ação desses atores seja aprimorada e estimulada.
Em áreas que não alcancem a dimensão da propriedade familiar, será intensificado o Programa Nacional de Crédito Fundiário, que financia o acesso à terra e a investimentos comunitários necessários à estruturação da unidade produtiva e à produção. O objetivo do programa é o aumento de renda e a conseqüente melhoria das condições de vida da população rural, incluindo trabalhadores rurais sem-terra, pequenos produtores com acesso precário à terra e proprietários de minifúndios. Ali, as associações de trabalhadores têm autonomia para definir seus membros, identificar o imóvel que vão adquirir e definir seu projeto produtivo e os investimentos comunitários prioritários. Também podem contratar assistência técnica para apoiar a elaboração e a implantação de seus projetos. Todos os investimentos são gerenciados pelas próprias comunidades.
Para garantir a chegada do Programa Nacional de Crédito Fundiário nos municípios onde se encontra o trabalho escravo, o MDA pretende estabelecer parcerias com sindicatos de Trabalhadores Rurais, a Federação dos Trabalhadores Rurais, Delegacias Regionais do Trabalho e Sistema Nacional de Emprego, para divulgar a rede de atendimento disponível e conseguir reinserir os trabalhadores no mercado de trabalho formal. “Dar oportunidade para libertos é fundamental para que não haja um ciclo vicioso de reincidências”, ressalta Leonardo Soares Oliveira, diretor de fiscalização de trabalho do MTE.
Já o Incra deve incluir os municípios identificados como de origem, aliciamento e escravidão de trabalhadores na área de atuação do Programa de Cadastro de Terras e Regularização Fundiária no Brasil, criando o indicador “Erradicação do Trabalho Escravo” como critério de seleção para eleição de cidades a serem trabalhadas. E implantar projetos de assentamentos da reforma agrária tendo como público preferencial os trabalhadores que forem encontrados nesta situação.
“É indiscutível o impacto da implantação de projetos de assentamentos de reforma agrária na organização social, econômica e cultural das comunidades beneficiárias, influenciando em alguns casos a reorganização de cadeias produtivas, elevação do grau de participação escolar de crianças, jovens e adultos e redimensionamento da disponibilidade dos serviços sociais nos municípios. A disponibilização do conjunto de políticas públicas sociais que são aportadas às famílias beneficiárias com a implantação de um projeto de assentamento redefine a relação Estado/cidadão tornando-os mais próximos”, diz o texto do programa lançado nesta quinta em Brasília.
Também fazem parte do programa as políticas públicas educacionais disponibilizadas aos beneficiários da reforma agrária, cujo impacto no desenvolvimento de valores, acredita o governo, possibilita uma visão mais crítica, preventiva e resistente ao aliciamento de trabalhadores rurais. “O objetivo deste programa é não tratar os trabalhadores como números, mas como indivíduos”, destacou Nilmário Miranda. O governo também anunciou que pretende intensificar as articulações com lideranças políticas para a aprovação imediata da Proposta de Emenda Constitucional 438, que prevê o confisco dos imóveis onde tenha sido flagrada a exploração do trabalho escravo. O texto já foi aprovado pelo Senado e aguarda segunda votação na Câmara dos Deputados. “Nos debates sobre a PEC, vi deputados com discursos muito parecidos ao dos escravocratas do século passado, quando se dizia que negro não tinha alma e portanto não era gente. Ouvi argumentos semelhantes em audiências públicas, que falavam que o Brasil não poderia reconhecer o trabalho escravo porque prejudicaria a imagem no exterior, ou até porque poderia ser considerado subsídio produtivo que ferisse os acordos de comércio”, lembrou Miranda, reforçando a urgência da aprovação da proposta.
O Grupo de Trabalho do MDA/Incra criado para a aplicação do programa pode ser mantido sob a forma de um grupo ou comissão, e deve se reunir bimensalmente para debater o desempenho de cada secretaria na operacionalização das propostas. Inicialmente, trabalhará com dois municípios que estão entre os principais fornecedores de mão de obra escrava – Açaílândia (MA) e Barras (PI) – e com o território do sul do Pará (Bannach, Conceição do Araguaia, Cumaru do Norte, Floresta do Araguaia, Pau D’Arco, Redenção, Rio Maria, Santana do Araguaia, Santa Maria das Barreiras). Não há orçamento extra do MDA previsto para essas ações.
“O compromisso do MDA é extremamente importante, mas espero que o plano seja implementado imediatamente e não esbarre em burocracias, contingenciamentos e corrupção”, ponderou Frei Xavier Plassat, da Comissão Pastoral da Terra. “Hoje, 32 trabalhadores foram libertados no Tocantins. Ontem, 220 trabalhadores foram libertados de cinco carvoarias em Goianesia, no Pará. Carvoarias que estavam em terras griladas. São terras de trabalho reduzidas a terras de matança. Precisamos acabar com isso”, concluiu.
Fonte: Agência Carta Maior (Bia Barbosa – colaborou Verena Glass, de Brasília)