A primeira medida de impacto do recém-criado Conselho Nacional de Justiça (CNJ) deixou o chamado controle externo do Judiciário novamente exposto à resistência dos magistrados brasileiros. A Resolução nº 7, aprovada no dia 18 de outubro pelo CNJ, determinou o fim do nepotismo na Justiça brasileira e despertou furor em uma parcela da magistratura, que já ingressou com nada menos do que três ações no Supremo Tribunal Federal (STF). Mas, apesar das críticas e da reação judicial da classe dos juízes, ao que tudo indica o nepotismo pode estar próximo do fim. O próprio Supremo já deu seu aval à existência do CNJ ao indeferir uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) proposta pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) contra o novo órgão em abril deste ano. É ele, também, que julgará toda e qualquer ação contra a proibição de contratação de parentes nos tribunais do país, já que esse tipo de ação sequer tramitará na primeira e segunda instâncias judiciais. Por outro lado, a pressão dos magistrados contra a resolução não encontra coro nem na própria classe. Uma pesquisa inédita realizada pela AMB com 3.500 juízes de todo o país demonstra que nada menos do que 67,9% deles são favoráveis à resolução do conselho que deu fim ao nepotismo.
Entre os itens mais controversos da Emenda Constitucional nº 45/2004, que estabeleceu a reforma do Judiciário, o controle externo havia ganho uma trégua depois que o Supremo deu seu aval ao novo órgão na Adin proposta pela AMB. Mas, a partir da edição da Resolução nº 7, as reações ressurgiram. Ainda não há registros de presidentes de tribunais que defendam publicamente o direito de empregar parentes nas cortes que dirigem, mas as críticas à competência do CNJ para interferir no assunto são abundantes.
As primeiras reações coordenadas vieram neste mês durante encontros do Colégio de Presidentes dos Tribunais de Justiça, realizado em São Luís, e dos corregedores-gerais de Justiça, em Maceió. Enquanto o colégio dos presidentes fez uma defesa moderada da reserva legal do Estatuto da Magistratura para tratar do assunto, os corregedores explicitaram a desobediência aberta à determinação que proíbe o nepotismo.
Segundo o coordenador do Colégio de Presidentes dos Tribunais de Justiça, o desembargador mineiro José Fernandes Filho, os presidentes dos tribunais, ao contrário dos corregedores, não estão dispostos a desobedecer a resolução que decretou o fim do nepotismo, mas há dúvidas sobre a competência do conselho para legislar sobre o assunto. A proposta dos presidentes foi estudar o ajuizamento de uma medida judicial para derrubar a resolução – um mandado de segurança ou uma Adin no Supremo.
A Adin no Supremo, no entanto, veio em nome da desconhecida Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (Anamages), criada em 2001 e que conta com 3.200 associados. Outras duas ações já tramitam na corte suprema: dois mandados de segurança propostos por parentes de magistrados que questionam a resolução para tentar se manter nos cargos.
Há quem espere, a partir de agora, uma chuva de mandados de segurança nas primeiras instâncias contra a proibição da contratação de parentes que, pela resolução, devem ser afastados. Mas o conselheiro do CNJ Alexandre de Moraes não acredita nessa possibilidade. “O assunto deve ser encerrado logo no primeiro julgamento do Supremo sobre o tema”, diz. Isso porque, de acordo com o artigo 102, inciso I, alínea “r” da Constituição Federal, cabe ao Supremo processar e julgar todas as ações contra o novo conselho. “Esse início de fiscalização acaba incomodando”, afirma. “Estranho seria se não existisse reação.”
Um dos argumentos da parcela de juízes contrária à resolução do CNJ é o de que ele estaria legislando, tarefa que cabe somente ao Poder Legislativo. Mas, para Moraes, o argumento é falho. “Para elaborar a resolução, o CNJ se baseou no artigo 37 da Constituição, que traz os princípios da moralidade e impessoalidade no âmbito do Judiciário”, explica. Outro argumento usado por alguns juízes é o de que as Constituições estaduais proíbem a contratação de parentes de até segundo grau, enquanto o CNJ foi além e estendeu a regra para o terceiro grau de parentesco. “Mas o próprio Supremo entende que a vedação ao grau de parentesco seria até o terceiro grau”, afirma.
A reação dos juízes é contundente, mas não uníssona. Uma pesquisa inédita realizada pela AMB com 3.500 magistrados associados da entidade demonstrou que 67,9% deles são a favor da proibição do nepotismo, e apenas 23,8% são contrários. Entre os juízes de primeira instância que responderam a pesquisa, 71% são favoráveis à proibição, contra 58,4% entre os desembargadores. Mas um dos indícios mais importantes de uma mudança cultural, segundo o presidente da AMB, Rodrigo Collaço, é a posição dos juízes por tempo de magistratura. Enquanto 74,8% dos juízes com até cinco anos de profissão são favoráveis ao fim do nepotismo, 59,6% dos juízes com mais de 21 anos de carreira o são. “Acredito que a repulsa da sociedade em relação ao nepotismo vai prevalecer”, afirma Collaço.
Hoje, o CNJ analisa novamente o nepotismo, mas por um outro viés. Está na pauta do conselho um pedido de providências do Colégio de Presidentes dos Tribunais de Justiça que requer a alteração de dispositivos da Resolução nº 7 – que estabelece o fim da contratação de parentes de até terceiro grau e a vedação do nepotismo nas prestadoras de serviço às cortes.
Na prática, o fim do nepotismo pode demandar um certo tempo. Um levantamento feito pela Fundação Joaquim Nabuco descobriu que um terço dos 382 cargos comissionados do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (TJPE) eram ocupados por parentes de magistrados e autoridades locais. Mas não há um estudo que demonstre quantos parentes ocupam cargos comissionados em toda a Justiça brasileira. O juiz Carlos Magno, membro da Associação dos Juízes para a Democracia em Recife, diz que, apesar da profusão de casos de nepotismo no TJPE, ainda não houve nenhuma mobilização do tribunal para planejar a substituição dos mais de cem cargos que devem ficar vagos caso a resolução seja aplicada – o que deve ocorrer até 14 de fevereiro.
O tipo de coerção que o CNJ pode exercer sobre os tribunais que resistirem à determinação pode variar bastante. A rigor, uma ação disciplinar contra um juiz levada ao conselho pode resultar em advertência, suspensão ou até aposentadoria de um magistrado. De acordo com Carlos Magno, contudo, a medida mais forte que o CNJ pode tomar é anular o ato do tribunal que autoriza a contratação de parente. Se o tribunal prosseguir com o pagamento de um contrato nulo, seu presidente incorre em ato de improbidade administrativa – o que pode resultar no ajuizamento de uma ação penal na Justiça, levando à perda do cargo.
Fonte: Jornal Valor Econômico (Fernando Teixeira, Cristine Prestes e Zínia Baeta, de Brasília e de São Paulo)