Por Marcela Cornelli
Terminou na última quinta-feira, dia 30/11, em Belém (PA) o Tribunal Internacional dos Crimes do Latifúndio do Pará, que julgou a responsabilidade do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e do ex-governador do Pará Almir Gabriel em crimes de violação do direito à vida, direito à liberdade, direito a um Judiciário independente e imparcial, da proibição do trabalho escravo e de crimes contra o meio ambiente, ocorridos no Pará durante os oito anos de seus mandatos (1995-2002).
Após um dia de depoimentos de trabalhadores rurais sobre casos de assassinatos, prisões ilegais, tortura, ameaças de morte, trabalho escravo, perseguição do Judiciário, impunidade dos criminosos e crimes ambientais praticados por madeireiros, fazendeiros e grileiros, o júri, que também analisou um processo de mais de mil páginas com provas documentais, considerou, por unanimidade, os réus culpados em todas as acusações.
Antes da leitura do veredicto, apresentado pelo jurista Hélio Bicudo, presidente do tribunal, os membros do júri justificaram seus votos perante uma platéia de mais de mais de 500 integrantes do MST. A juíza carioca Salete Maccaloz, primeira a se pronunciar, considerou os réus culpados por abuso de poder por não garantirem a paz no campo, por não terem ativado o Ministério Público como defensor dos direitos dos trabalhadores rurais e por não terem cobrado do Judiciário ações coibitivas dos crimes e julgamento apropriado dos criminosos. “Deixar que se puxe o gatilho é uma atitude participativa”, afirmou a juíza, numa referência à chacina de Eldorado dos Carajás, onde 19 sem-terra foram assassinados pela polícia em 1996.
A advogada e ativista americana de Direitos Humanos Jennifer Harbury, também ao se referir aos assassinatos de Eldorado dos Carajás, afirmou que as provas de que houve execuções (“balas na cabeça e na nuca são provas de execução. Encontramos isso nas valas comuns da Bósnia”) são um indício de que há a intenção de eliminar trabalhadores rurais sem julgamento. Segundo ela, o número desproporcional de assassinatos e prisões sem mandado ou acusações formais de lideranças sociais comprovam que há a intenção de coibir ilegalmente as lutas por reforma agrária e Direitos Humanos no Pará, originária ou consentida pelo poder público. Também é crime a omissão dos réus nos casos de exploração ilegal de madeira e de trabalho escravo, principalmente porque esta postura favorece a reincidência, avalia a advogada. Harbury afirmou que a criminalização dos movimentos e o favorecimento de latifundiários, grileiros e pistoleiros por parte do Judiciário (e a conivência dos réus) é uma forma de perpetuar as violações de direitos humanos no campo. “Enquanto dirigentes dos movimentos sofrem tortura nas prisões, são arrancados pela polícia de suas casas e lhes é negado o direito de defesa, fazendeiros que mandam matar e usam trabalho escravo recebem penas mínimas, como pagamento de cestas básicas – isso quando vão a julgamento.”
Por várias vezes durante a declaração de votos dos jurados, Cardoso e Gabriel foram acusados de desrespeito às convenções internacionais de Direitos Humanos assinadas pelo Brasil. Segundo Fernando Fernandez, membro da entidade Plataforma Rural, da Espanha, é dever do Estado garantir aos cidadãos o direito à vida e à segurança. “O acesso à justiça social, ao sustento, à habitação – o que inclui a terra – e à proteção é um direito básico garantido pelo Direito Internacional. O não-cumprimeto do dever de assegurar estes direitos faz dos réus culpados neste julgamento”, afirmou Fernandez.
Neoliberalismo é sustentáculo do latifúndio, dizem religiosos
Em uma carta aos trabalhadores do MST, lida pela atriz Dira Paes na abertura dos trabalhos de quinta-feira, o arcebispo de São Félix do Araguaia, Dom Pedro Casaldaliga, afirmou que o latifúndio é o “símbolo maléfico do capitalismo e do imperialismo no campo”, e que o Tribunal de Crimes do Latifúndio deve ser considerado uma manifestação maior de protesto contra as leis do dinheiro que levam à impunidade . Neste sentido, o padre Martinho Lenz, membro da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e do júri do tribunal, disse que a chamada globalização neoliberal impôs ao campo as regras que governam o mercado internacional, “subordinando a Justiça à ganância e o Judiciário aos interesses dos latifundiários”. Segundo o padre, a luta do MST por terra é legítima principalmente por resgatar a dignidade do homem do campo. “Se o MST não existisse, teríamos que inventá-lo. Bendito seja o MST”, disse Lenz.
Para os organizadores e jurados do tribunal, o evento atingiu o objetivo de chamar a atenção da sociedade nacional e internacional para a situação de violência contra trabalhadores rurais, dirigentes sociais e meio ambiente no Pará. Segundo a diretora da organização irlandesa Frontline, o tribunal, ao honrar a memória das lideranças assassinadas, ajudou a fortalecer o sentimento de união dos trabalhadores rurais e evidenciou a luta por justiça no Pará. Na avaliação do diretor estadual do MST, Raimundo Nonato, as expectativas dos cerca de 800 integrantes do movimento que acompanharam os trabalhos do tribunal foram superadas. “Precisamos instituir esses tribunais populares como mais uma forma de luta. Apesar de não terem validade legal, têm uma forte legitimidade política”, afirma Nonato.
Tanto Fernando Henrique Cardoso quanto Almir Gabriel foram citados antes do início do tribunal, mas não se manifestaram a respeito. Os réus foram defendidos pelo advogado Rubens Mota, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Pará.
Fonte: CUT Nacional