Por Marcela Cornelli
O ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso (FHC) defendeu em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo ontem um novo “pacto constitucional” a partir de 2007. Na prática, seria uma mini-constituinte, com os deputados e senadores eleitos em 2006 tendo poderes mais amplos para “revisar” o texto constitucional — uma reedição da fracassada tentativa de golpear a Constituição em 1993, barrada pela forte oposição aos intentos dos liberais. “Acho razoável fazer com que os eleitos em 2006 possam fazer esse trabalho a partir de 2007. Você tem de dar um mandato para isso. Mas eu acho que tem de ser com uma área específica. É para resolver as grandes questões”, afirmou FHC.
Quando ele fala em “grandes questões”, a lembrança é remetida para certas práticas do seu governo. Enquanto esteve na Presidência da República, FHC sempre atacou os aspectos democráticos e nacionais da Constituição. “Verifica-se que as emendas foram feitas à espera da oportunidade de revogar a Constituição e como não era possível a revogação total, procurou-se a revogação de partes. Isso ficou muito evidente durante o governo FHC, podendo-se até perceber uma diretriz que tem como pontos básicos a redução dos direitos fundamentais. Um grande exemplo é a chamada flexibilização dos direitos trabalhistas e as privatizações, que reduzem a participação do Estado na vida social brasileira, quando se sabe que sem o Estado, as discriminações sociais jamais desaparecerão”, disse recentemente o professor Dalmo de Abreu Dallari, um dos mais importantes ícones da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), em entrevista ao site Carta Maior.
Muro de Berlin
Ontem, FHC voltou a defender suas idéias neoliberais. “A parte da visão econômica e da visão do Estado (na Constituição) veio antes da queda do Muro de Berlim. Era uma visão de um Estado mais intervencionista e, pior do que isso, muito corporativista. Foi um texto muito detalhista e eu tentei salvar com uma emenda minha na época, que nunca foi levada a sério. Inspirado na Constituinte de 23, eu dividia a Constituição em três pedaços. Um com as cláusulas pétreas. Um para modificar com maioria qualificada. E outro que pudesse ser mudado com maioria mais um. Já era visível que teria que mexer”, disse ele.
Para Dallari, ao contrário de FHC, “a Constituição de 1988 é a mais democrática de todas as outras que o país já teve, pois é a primeira feita com grande participação popular. Em segundo lugar, é a mais democrática pelo conteúdo. É a primeira Constituição que começa firmando princípios, dos quais prevê que o poder emana do povo e será exercido ou pelo povo diretamente ou através de seus representantes. Todas as Constituições anteriormente promulgadas só previam a participação do povo através de representação e a atual prevê a democracia direta. No conteúdo da Constituição, pode-se encontrar toda essência dos pactos de Direitos Humanos, civis, políticos, culturais, econômicos e sociais, daí sua modernidade, que dá prioridade à pessoa humana e estabelece uma série de instrumentos para a efetivação dos direitos fundamentais”.
Segundo o jurista, “se essa Constituição fosse inteiramente aplicada, o Brasil seria formado por uma sociedade justa, o que não acontece. A partir de 1988, se verificou uma desmobilização do povo brasileiro, pela impressão de que tendo uma Constituição democrática, tudo iria funcionar espontaneamente. Não havendo mais a presença forte do povo, muitos representantes (e interessados que influem sobre os representantes, sobre o governo) começaram a trabalhar para impedir a aplicação da Constituição e — pior do que isso — para tentar revogar a Constituição. Além disso, a Constituição brasileira já sofreu 40 emendas em 15 anos, enquanto que a dos EUA, em 250 anos, só teve 26 emendas”.
Mobilização popular
Revogar a essência da Constituição é exatamente o que FHC tentou, enquanto esteve na Presidência da República, e defendeu na entrevista de ontem. Dallari também criticou as emendas à Constituição. “Essas emendas absolutamente não se justificam. Em primeiro lugar, grande parte destas emendas foi feita sob o pretexto de que a Constituição era muito longa. No entanto, percebemos que elas tornaram a Constituição mais longa ainda. Em segundo lugar, vem a questão da governabilidade. É comum ouvir dizer que essa Constituição torna o Brasil ingovernável (tese sempre defendida por FHC), o que é um absurdo completo e sem fundamento. Ninguém nunca provou essa tese. Usa-se esse argumento levianamente. Na verdade, ela não atrapalha o Brasil de modo algum, bem pelo contrário, se ela fosse aplicada, daria muito mais tranqüilidade aos brasileiros, mais paz social e menos conflitos.”
Para Dalmo Dallari, a mobilização popular é fundamental para defender a Constituição. “Como existe uma resistência muito grande das elites sociais e de setores do governo, inclusive do parlamento e do STF, a única forma de garantir a efetiva aplicação da Constituição é a mobilização do povo. Não há outro caminho. Aí se inserem os movimentos sociais, que possuem um papel extremamente importante para garantir a aplicação da Constituição, atuando das mais variadas formas, institucionalizada ou através de associações e sindicatos. Pode ser também através de mobilização social, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), que não tem personalidade jurídica, não é uma associação, mas é um movimento social, consistindo uma forma muito eficiente de conseguir resultados. Forma eficiente e legítima, porque tem base constitucional.”
Fonte: Portal Vermelho