Não é novidade para ninguém que, nos últimos 30 anos, a igreja, os grupos de amigos e, principalmente, a escola têm perdido espaço para a mídia no papel de socialização política dos cidadãos. A centralidade dos meios de comunicação em massa na construção das representações da realidade, que orientam o comportamento cotidiano das pessoas – independentemente de classe social, raça ou gênero –, se constitui atualmente numa das dimensões mais complexas da contemporaneidade. Culturalmente, é a mídia que condiciona a maneira como interpretamos o mundo, tendo deixado, portanto, de ser mera transmissora de informações para ser construtora do próprio conhecimento humano. Discutir as consequências e perigos de tamanho poder de um setor que está cada vez mais oligopolizado e que atua desapercebido para a maioria da população foi o objetivo de um dos debates temáticos de quinta-feira (29) no III Fórum Mundial de Educação.
A mesa “O conhecimento, a informação e o poder da mídia” levantou as principais questões acerca da conjuntura dos meios de comunicação brasileiros e sua relação com o processo educativo da sociedade. Analisou, por exemplo, como a concentração da propriedade dos meios por pouquíssimos grupos impede a livre manifestação do pensamento e a construção, a partir do debate de idéias, de uma opinião pública autônoma. Enquanto países como França, Inglaterra e até Estados Unidos avançam no sentido de garantir uma mídia plural, no Brasil as telecomunicações e as tecnologias de informação estão entre os quatro setores com maior número de fusões no primeiro semestre de 2003 – um crescimento de 35% em relação ao ano anterior.
Para o sociólogo, jornalista e teórico da comunicação Venício Lima, que participou do debate, tal concentração da produção e distribuição da informação potencializa negativamente o já crescente poder da mídia. “Nossa legislação é omissa e ineficaz para a questão da propriedade dos meios. A necessidade pública da diversidade de conteúdo não pode ser confundida com a quantidade de canais disponíveis. Diversidade significa a presença na mídia de diferentes visões e opiniões. Quando isso não acontece, num cenário em que a mídia é uma escola invisível que disputa com a escola real o espaço de representação do mundo, a coisa fica complicada”, aponta Lima.
Ele sugere uma democratização do poder da mídia baseada na educação via conhecimento emancipador. Algo que poderia ser conquistado, por exemplo, com a introdução de disciplinas nas escolas que preparem os alunos para a interpretação da mídia e ajudem a pautar a discussão sobre os meios de comunicação na sociedade, ampliando o leque de atores envolvidos no setor. Mas algo que, ao mesmo tempo, ainda depende da superação de barreiras tremendas, como a falta de acesso dos professores à internet. No ano passado, uma pesquisa realizada pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) mostrou que mais da metade dos 5 mil professores entrevistados não tem computador em casa, não navega na rede mundial e não usa sequer o e-mail. Enquanto isso, o acesso à TV, que segue controlada por poucos, é alcançado por 97% da população.
“O acesso ao conhecimento e à informação plural é fundamental para o desenvolvimento das nações. A mídia tem um forte poder para diminuir a distância entre os países pobres e os desenvolvidos”, afirma Jorge Werthein, representante da Unesco no Brasil, que coordenou o evento no FME. “Ressalto então o erro adotado com a proliferação de laboratórios de informática nas escolas. Seria mais importante permitir o acesso aos computadores por parte dos professores através de subsídios. Se não incorporarmos os professores ao mundo digital, esses laboratórios continuarão ociosos e fechados”, acredita.
Fazer da sala de aula um espaço de aprendizado para a interpretação da mídia e de experimentação e articulação para o fortalecimento de outras vozes – via produção e veiculação de informação dentro do ambiente escolar – pode ser o primeiro passo para o reconhecimento do direito à comunicação por parte de todos.
“A partir das escolas, podemos aumentar a consciência da população e estimular que a sociedade se organize para reivindicar seus direitos. Precisamos garantir a massificação de jornais locais, das rádios comunitárias, apoiar as TVs comunitárias e universitárias. A mídia comercial precisa admitir que existam mídias alternativas, que os grupos excluídos tenham seus próprios veículos. Isso ajudaria a pagar a dívida histórica do déficit de conhecimento que temos com a nossa população”, diz Venício Lima.
Segundo o sociólogo, isso só será possível a partir da mobilização pública. Ao contrário das expectativas de uma mudança no quadro das comunicações no Brasil que muitos alimentaram com a eleição de Lula, até o momento as políticas públicas para esta área não foram priorizadas. Em paralelo, esperar mudanças na legislação significaria ignorar que as leis são feitas num Congresso onde 27% dos parlamentares são proprietários ou têm interesse direto nos meios de comunicação. Na opinião de Lima e das centenas de educadores que assistiram a este debate no Fórum, a apropriação dos meios de comunicação pela sociedade é um desafio de todos, que começa a ser enfrentado assim que cada um pisar de volta na sua sala de aula. (Fonte: Diário Vermelho)