– Entrevista: István Mészáros e as contradições dos nossos tempos

7/7/2011

Era uma manhã fria de junho quando o filósofo húngaro István Mészáros, 81 anos, apareceu à porta da casa no bairro de Sumarezinho, zona oeste de São Paulo, onde se hospeda quando vem ao Brasil. Desta vez, a viagem tinha como escala, além da capital paulista, as cidades de Salvador, Fortaleza e Rio de Janeiro. A ideia era participar de encontros e divulgar o livro István Mészáros e os Desafios do Tempo Histórico (Boitempo, 280 pág., R$ 43), uma coletânea de artigos sobre sua obra – inclusive com um artigo de sua autoria.

Alto, os olhos enormes e azuis, Mészáros não parece, à primeira vista, a metralhadora giratória que se apresenta logo no início da entrevista, quando faz um relato de quase 40 minutos sobre a situação políticas na Europa e nos EUA. “Berlusconi é um palhaço criminoso”; “Obama diz que vê a luz no fim do túnel, mas não vê que é a luz de um trem que vem em nossa direção”; “A Alemanha se engana quando pensa que vive um milagre econômico”; “O partido socialista agiu contra os trabalhadores na Espanha”; “Os políticos na Inglaterra parecem uma avestruz que insistem em esconder sua cabeça debaixo da terra”…

Em cada resposta, o professor emérito de Filosofia da Universidade de Sussex e um dos mais destacados marxistas da atualidade deixa sempre explícita a necessidade de se entender o processo histórico da formação da sociedade atual para que se possa compreender, de fato, qualquer questão dos nossos tempos. Crítico da social-democracia européia, que ao longo do século assumiu um tom reformista dentro do sistema dominante, Mészáros, que foi discípulo de György Lukács (de História e Consciência de Classe), vê com desencanto as opções que hoje se apresentam à esquerda, e também as manifestações populares que estouraram pelo mundo desde o início do ano. O motivo é simples: o discurso funciona, mas a realidade é que o sistema capitalista é cada vez mais inviável, com líderes das nações buscando mais dívidas para cobrir rombos colossais e a necessidade de se produzir cada vez mais num momento de esgotamento de recursos. A chamada crise financeira internacional, portanto, não é cíclica, mas estrutural, conforme pontua.

Mesmo assim, em duas horas e meia de entrevista, Mészáros deixa escapar um certo tom de otimismo em relação ao futuro – “que, infelizmente, não será no meu tempo” – quando fala sobre tomadas de consciência e mudanças que observa na América Latina.

Por Matheus Pichonelli e Ricardo Carvalho/Carta Capital 

As contradições do capitalismo 

“E assim as questões imediatas serão priorizadas em detrimento dos reais problemas que assolam a sociedade americana, que nunca serão confrontados. Então por um lado temos a perspectiva de tempo de 50 anos e, por outro, uma trágica realidade de pressões em termos de três, quatro, cinco anos”.

As contradições terão de ser enfrentadas por esses movimentos que emergiram no mundo árabe e na Europa. Terá de ser um movimento das massas, sem pequenos grupos de intelectuais se reunindo e tomando as decisões. E sim as massas, que devem estar dispostas a assumir o fardo e as consequencias de realmente fazer alguma coisa. E, ao mesmo tempo, elas devem aceitar as responsabilidades das escolhas que forem feitas. Isso é importante porque, no nosso círculo de decisões políticas existente hoje, ninguém nunca é responsável. Eu lembro que nos Estados Unidos houve uma investigação sobre o “Iran–Contra Affair”, a cumplicidade de algumas figuras políticas do alto escalão norte-americano com o regime iraniano. Isso foi durante o governo de Ronald Reagan.

O Congresso chegou a produzir uma resolução em que afirmava que Reagan havia subvertido a Constituição dos Estados Unidos. Ele subverteu a Constituição do seu país e deveria assumir total responsabilidade por isso! Mas o que aconteceu? A resolução tornou-se um punhado de palavras vazias e Reagan quase foi beatificado como um dos grandes estadistas dos Estados Unidos. Isso representa a total subversão dos nossos valores. Porque até mesmo valores sérios do pensamento liberal, como os defendidos por John Stuart Mill no século XIX, que confrontou de maneira inadequada, mas confrontou, a contradição do crescimento ininterrupto da nossa economia, está fora de questão. Ninguém nunca é responsável.

O que acontece nas eleições? Um novo partido continuará a culpar seu antecessor exaustivamente. Isso acontece hoje na Grã Bretanha, onde existe uma coalizão entre o partido conservador e o partido liberal. E eles não fazem mais do que afirmar que tudo o que produzem de negativo é consequência da administração anterior, do Partido Trabalhista. Isso é característico de um avestruz que insiste em esconder sua cabeça debaixo da terra.

Existe uma outra característica que precisamos observar, a dimensão de tempo. É completamente absurdo o discurso dos políticos quando afirmam que em 2050 os níveis de carbono estarão reduzidos e nossos problemas ambientais resolvidos. Nós estamos caminhando exatamente na direção contrária. Então por um lado temos uma projeção de tempo que engloba os próximos 30, 40 e 50 anos enquanto nossa cultura defende que encontremos soluções para os próximos quatro ou cinco anos, porque um ciclo político não vai muito além desse tempo. Nos Estados Unidos teremos eleições em breve, quando Obama provavelmente será reeleito. E assim as questões imediatas serão priorizadas em detrimento dos reais problemas que assolam a sociedade americana, que nunca serão confrontados. Então por um lado temos a perspectiva de tempo de 50 anos e, por outro, uma trágica realidade de pressões em termos de três, quatro, cinco anos.

O sistema capitalista não só foi válido por um tempo considerável como foi, de longe, mais poderoso e dinâmico do que qualquer outro sistema. Mas existe um limite para isso e esse sistema está se tornando cada vez mais destrutivo. E esse é o grande problema que os movimentos políticos e sociais terão de enfrentar, a separação da política das dimensões sociais e econômicas. Isso é parte do capitalismo, agrupar essas três dimensões. Se, no passado, o agrupamento dessas dimensões funcionou e possibilitou transformações econômicas violentas, além de transformações políticas, hoje já não surte efeito. E é por isso que quando as demandas desses movimentos sociais chegam aos parlamentos nada ocorre, no círculo de decisões políticas já existe uma inércia e as limitações herdadas do passado.

Pense nisso, o sistema capitalista, no auge da sua produtividade, é incapaz de satisfazer plenamente as necessidades da população mundial por comida. É calculado que em 20 anos ou menos o preço dos alimentos será absurdamente mais caro do que é hoje. Atualmente ainda existem revoltas promovidas por populações famintas. Nada poderia atestar mais graficamente a falência desse sistema. No Norte da África, essas pessoas que se rebelaram recentemente gastam em média 80% da sua renda apenas para assegurar comida. Com o aumento do preço dos alimentos, como eles vão ficar? E, com esse aumento, algumas pessoas, que se dizem especialistas, já começaram a culpar os chineses e indianos pela alta dos preços. Com o fortalecimento das suas economias, eles começaram a comer. Que ultraje! Populações inteiras que sempre trabalharam como escravos, em jornadas de até 14 horas ao dia, começaram a comer como gostariam? Isso não é um absurdo? E é com desculpas como essa que nossa sociedade se acomodou para afrontar seus problemas. Eu insisto, fechando os olhos e varrendo tudo para baixo do carpete.

O grande dinamismo por trás do sistema capitalista ocorreu no momento em que o valor de troca substituiu o valor de uso. O uso primário de um produto capitalista é a venda, uma vez que você tenha vendido o seu produto, ele cumpriu com o seu objetivo. Não importa para onde ele vá, não importa se ele será utilizado uma, duas ou dez vezes. Isso é totalmente irrelevante.

O sistema capitalista, que possui essa dinâmica, atingiu o limite de suas contradições. O principal ponto do capitalismo é ignorar a necessidade real das pessoas. Prova disso é que ainda hoje as pessoas sofrem enormemente. Elementos da necessidade humana não podem ser considerados porque a natureza do nosso sistema é um crescimento sem limites e sem fim. E nesse sentido o céu é o limite. Não é bem assim. Dizer isso é enganar-se a si mesmo. Existe um limite para os seres-humanos e a maneira como nos relacionamos com a natureza. Nossa existência depende da manutenção de uma relação aceitável com a natureza.

A crise econômica mundial “Engana-se quem acha que esse excedente chinês salvará o sistema, porque são três trilhões de dólares em comparação a 30 trilhões do restante do mundo. Não significa nada.”

A crise não caiu do céu, ela foi gerada. Quais são as razões dessa crise? A dívida dos Estados Unidos é hoje algo em torno de 14 trilhões de dólares. E essa é uma das dimensões que foi varrida para debaixo do carpete, 14 trilhões da dívida norte-americana varridos para debaixo do tapete. E ela cresce cada vez mais. Agora eu pergunto, por quanto tempo isso pode seguir adiante? Nos EUA, no último mês, o desemprego aumentou depois que trilhões de dólares foram injetados na economia.

O presidente Obama disse certa vez que já podia ver a luz no final do túnel da crise. Eu concordo com ele, também vejo uma luz. Mas é a luz de um trem vindo em nossa direção. Na ocasião, ele disse que o déficit dos EUA seria reduzido pela metade, e eu afirmei que era mais provável que o déficit dobrasse, exatamente o que aconteceu. Agora o Congresso norte-americano é incapaz de estender o próprio limite do endividamento do país. E essa conjuntura é global, está conectada com todos os outros países. Não é um problema da Espanha, ou dos Estados Unidos, ou de Portugal. Pegue a Itália como exemplo, onde um palhaço criminoso governa o país, Silvio Berlusconi.

Eu prefiro chamá-lo de Burlesconi, que é especialista em inventar soluções artificiais e provisórias para os problemas da economia italiana. Ele sofreu importantes perdas eleitorais nos pleitos municipais, mas eu ainda insisto, o que mudará com essas eleições? Muito pouco. Na Grécia, por exemplo, um governo de centro-direita foi substituído pelo Partido Social-Democrata. A única coisa que mudou foi a revelação de uma dívida catastrófica que causou um pedido de resgate de 100 bilhões de dólares para uma economia relativamente pequena. E, para piorar, eles precisam de um novo resgate. Por quanto tempo isso continuará a sufocar o sistema?

Os países encontraram um termo muito bonito para se referir a esse constante endividamento, “endividamento soberano”. Soberano é uma palavra que parece boa, mas estamos falando de algo em torno de 30 trilhões de dólares, que está aumentando inexoravelmente. Os economistas dizem que o único país que não enfrenta isso é a China, que está sentada em um excedente de três trilhões de dólares. Mesmo assim, engana-se quem acha que esse excedente chinês salvará o sistema, porque são três trilhões de dólares em comparação a 30 trilhões do restante do mundo. Não significa nada.

Agora, nenhuma das soluções para a crise virá do liberalismo. Os próprios limites do capitalismo precisam ser considerados, essa necessidade intempestiva por crescimento ilimitado. Isso significa exaurir nossos recursos estratégico-naturais. A própria questão da água, há muitas regiões no globo que a água não é mais apropriada para a produção e para o próprio consumo. Mesmo diante da exaustão gradual dos nossos recursos naturais, um imenso perigo, nós continuamos caminhando para a mesma direção do crescimento incontrolável. A própria solução para a crise financeira é crescer e crescer até superá-la.

As possíveis soluções para essa contradição assumem um caráter caricato. Karl Marx usou uma expressão interessante: “primeiro temos a tragédia, que depois transformamos numa farsa”. Isso se aplica ao capitalismo hoje, porque os especialistas dizem que nós vamos resolver os problemas da nossa relação com a natureza simplesmente reduzindo os níveis de emissão de carbono. Então é assim que vamos resolver o problema catastrófico do meio ambiente? Existe um limite para absolutamente tudo. É uma farsa porque todos os países, embora admitam que existe um grave problema a ser resolvido, continua a consumir energia irresponsavelmente. A população dos Estados Unidos representa 4% do total mundial e consome 20% dos recursos, um absurdo. Essa “solução fácil” é uma farsa, porque a não ser que a humanidade enfrente esse problema de maneira contundente – e aceite as consequencias dessa escolha – nós nos encontraremos em um cenário devastador.

Programas de distribuição de renda e classe média ressentida

“Talvez os críticos não sejam conscientes o suficiente sobre como a estrutura social é dolorosa para os mais pobres. O sofrimento é geralmente parte de um sistema imposto. A conscientização leva as pessoas a se perguntarem como resolver problemas como a fome. É com repressão?”

Todos esses programas estão ajudando as pessoas que vivem na miséria a saírem dessa situação. Isso é positivo e necessário, mas, sozinhos, não vão resolver os problemas. O Brasil não está imune aos problemas estruturais dos quais falamos. Sempre que programas como esses são criados, a classe média e alta tende a ficar enciumada e ressentida porque acham que estão apenas gastando dinheiro com a população mais pobre. Eu ouvia isso de um jeito muito intenso sobre as reformas promovidas pelo presidente Hugo Chávez, da Venezuela. “Vejam só como estamos gastando com isso”, diziam. Mas vejamos por outro lado: houve uma enchente colossal na Venezuela no ano passado e Chávez mandou os governadores com salas vazias nos prédios oficiais a abrigar pessoas que tinham sido afetadas pelos desastres. Isso é temporário, não resolve os problemas.

Então fizeram um programa para construir 200 mil casas para as pessoas atingidas. E as pessoas diziam: “É uma injustiça ter que ajudar essas pessoas”. Mas o oposto também é verdadeiro, porque muitos dos que reclamavam tinham recebido todo tipo de ajuda e facilidades durante a crise econômica. Agora, quando pensamos nos trilhões de dólares usados para salvar os bancos, quem recebeu esse dinheiro? Não foram essas pessoas que recebem benefícios do governo para sobreviver. Eles talvez tenham alguns milhares de dólares se acumularem por anos. Mas os bancos, as corporações, as grandes empresas receberam trilhões.

Quem salvou a General Motors? O governo dos Estados Unidos. Isso com Bush e com Obama. Colocaram trilhões de dólares em corporações corruptas e irresponsáveis.

Na Inglaterra, logo depois da Segunda Guerra, o governo trabalhista promoveu uma grande nacionalização e muitas pessoas viram aquilo como medidas socialistas. Mas o que eles nacionalizaram?

Todas as áreas falidas da economia. Eletricidade, minas de carvão, empresas de aço, e tudo mais. Todos os setores da economia capitalista que, sem essas medidas, não seriam salvas nem funcionariam. E ninguém fez rejeições. Diziam que eram ações para a garantia da economia.

E agora, recentemente, lemos nas manchetes de jornais as frases “salvando o sistema”, quando se referiam as medidas anti-crise adotadas. As pessoas realmente acreditam que não estão dando dinheiro para essas empresas, mas salvando o sistema. É aí que está o problema. Como você salva um sistema cavando mais buracos? Para fechar um buraco, você constrói outro maior e maior.

Tempos atrás, a Venezuela viveu uma rebelião que ficou conhecida como “Caracazo” (1989). Esse movimento aconteceu quando uma multidão de pessoas foi até a cidade de Caracas protestar contra as políticas econômicas do governo anterior. E o governo mandou suas tropas às ruas e assassinou pelo menos três mil pessoas. Chávez é o resultado das ações contra esse tipo de governo. O mesmo aconteceu durante a Comuna de Paris.

Então, sempre que alguém faz algo em benefício da população, como construir 200 mil casas para desabrigados, é acusado de gastar dinheiro.

Não acho que no Brasil alguém deva levar a sério as críticas aos programas sociais. Talvez os críticos não estão sendo conscientes o suficiente sobre como a estrutura social é dolorosa para os mais pobres. O sofrimento é geralmente parte de um sistema imposto.

A conscientização leva as pessoas a se perguntarem como resolver problemas como a fome. É com repressão? No “Caracazo” houve uma resposta militar. Isso hoje mudou. Não estou dizendo que não haja mais violência no mundo, mas isso hoje é algo inaceitável. No Egito, muitas pessoas foram reprimidas. Mas chegou uma hora que Mubarak, mandante da repressão, viu todos se voltarem contra ele, porque para fazer aquelas pessoas voltarem para casa seria necessário mandar matar todo mundo.

Ao mesmo tempo, ainda existem forças militares que defendem as políticas de ocupação de partes do mundo. E existem até teóricos militares nos Estados Unidos que dizem que não é mais possível para as tropas americanas saírem do Iraque nem do Afeganistão, onde a guerra dura quase dez anos.

A solução seria fazer com que os 40 mil combatentes fiquem por lá. Outros recomendam o uso de armas nucleares no Irã. Olha o grau da irracionalidade! Enquanto isso, os Estados Unidos têm uma dívida colossal. E estão cobrindo esses déficits tomando mais dinheiro emprestado. Outra dimensão do problema é que todo cidadão americano está endividado. Uma hora ou outra vai acontecer com os Estados Unidos o que acontece na Espanha, na Irlanda, em Portugal, na Grécia.

A Espanha está virtualmente falida, a Itália também. A Inglaterra também. E o que eles estão tentando fazer é justificar os altos a custos que estão submetendo as pessoas, cortando serviços de saúde e educação. Por trás de tudo isso estão as pressões históricas de um sistema anacrônico.

As pessoas ainda criticam os gastos com as pessoas que mais precisam. Depois da Segunda Guerra, surgiu a ideia do Estado de Bem Estar Social, que agora está sendo destruída. A ideia era que os ricos pagassem mais tributos, e a renda fosse distribuída. Agora, o que está acontecendo é o contrário. Nas regiões ricas, o que vemos é a isenção de taxas.

No Brasil a elevação do salário mínimo, por exemplo, foi uma iniciativa importante. Mas é um pequeno passo. Isso não vai mudar as estruturas econômicas que o Brasil terá que enfrentar, como qualquer país do mundo.

A onda conservadora europeia
“O que são esses partidos da social-democracia hoje na Europa? São herdeiros de anos de reformas que os trouxeram cada vez mais para a direita. O que aconteceu com as legendas mais radicais, como o Partido Comunista Italiano, de Gramsci? Suas propostas fundamentais foram completamente diluídas”.

Essa é a questão central. Todas as nossas instituições políticas atuais são frutos de um processo histórico. E o horizonte das soluções que podemos adotar por meio dessas instituições está condicionada a esse processo histórico. Os parlamentos dos países que tentam enfrentar essas questões também têm atuação limitada. As pessoas pensam que podem virar as costas para a história. Isso não é possível. Para qualquer compreensão da realidade, é preciso ter uma perspectiva histórica. O que são esses partidos da social-democracia hoje na Europa? São herdeiros de anos de reformas que os trouxeram cada vez mais para a direita.

O que aconteceu com as legendas mais radicais, como o Partido Comunista Italiano, de Gramsci? Suas propostas fundamentais foram completamente diluídas e o PCI se fragmentou. Os verdadeiros partidos de esquerda hoje na Europa são muito pequenos, sem representação. Outro exemplo: na Alemanha, antes da Primeira Guerra Mundial, a esquerda defendia que chegaríamos ao socialismo por meio de pequenos avanços sociais, sem realizar grandes mudanças estruturais. Mas, durante a Guerra, os social-democratas aliaram-se entusiasticamente ao governo imperial.

O que veio depois não foi um lindo governo a promover pequenos avanços rumo ao socialismo, mas sim o surgimento de Hitler e um cenário muito mais catastrófico. As propostas dessas legendas de esquerda foram diluídas historicamente. O próprio partido dito socialista espanhol foi o responsável por adotar, diante da crise de 2008, medidas que puniram os trabalhadores.

As revoltas do mundo árabe
“Autoridades inglesas declararam que a saída do ditador do Iêmen seria muito perigosa porque poderia significar o controle do país pela Al Qaeda e, portanto, um risco à segurança na Inglaterra. Dá para imaginar isso?”.

Esses movimentos estão surgindo lentamente. As pessoas estão começando a ficar extremamente desencantadas com a realidade da situação. No mundo Árabe, as revoltas aconteceram porque a situação simplesmente explodiu.

Em alguns casos, os ditadores foram depostos, mas quem atuava por trás deles? Nós falamos de democracia na imprensa ocidental, mas aqueles ditadores eram fantoches que atuavam na lógica norte-americana de governar o mundo. Por isso que eu digo que essa realidade é uma contradição imensa. No Iêmen, também há um ditador assassinando o seu povo, mas os Estados Unidos não quiseram dizer algumas palavras sobre democracia, eles não disseram que esse ditador deveria deixar o país e seu povo em paz. Simultaneamente, autoridades inglesas declararam que a saída do ditador do Iêmen seria muito perigosa porque poderia significar o controle do país pela Al Qaeda e, portanto, um risco à segurança na Inglaterra. Dá para imaginar isso? A Al Qaeda no Iêmen sendo um perigo para a segurança inglesa? É um absurdo e os políticos se atrevem a dizê-lo em público, mesmo que não acreditem sinceramente numa palavra.

Na Arábia Saudita, existe um regime brutal, praticamente feudal. Mas tudo bem, porque ela é uma aliada fiel das nossas democracias e liberdades. Esse tipo de contradição não pode seguir adiante.

E essas contradições causam a emergência de iniciativas diretas lideradas por pessoas sem ligações com partidos políticos. E isso é um dos sinais mais esperançosos. Há pouco tempo as reuniões políticas estavam repletas de pessoas mais velhas, e agora esses encontros estão repletos de pessoas mais novas.

As manifestações pela Europa
“Nós criamos o hábito de varrer nossos problemas para debaixo do carpete. Só que o nosso carpete histórico se parece cada vez mais a uma montanha, está cada vez mais difícil de caminhar sobre ele. Não há solução imediata” .

Em uma economia capitalista mais estruturada, como a Inglaterra, onde por anos a juventude foi extremamente alienada, houve uma verdadeira rebelião contra o apoio do Partido Liberal ao aumento das taxas para a educação superior. Os liberais opunham-se a esse aumento durante a campanha e a juventude inglesa realizou protestos massivos nas ruas e certamente os punirá nas futuras votações. E então vemos tanto o lado positivo quanto o negativo das nossas estruturas institucionais. O lado bom é que as pessoas revoltadas com a traição de um partido se manifestam e pressionam os partidos. Porém, o que mais podem fazer? Esperar anos pelo próximo pleito e colocar um pequeno pedaço de papel numa urna de votação. E o que um partido diferente pode trazer de novo? Muito pouco, quase nada. Uma vez eu citei a frase do escritor norte-americano Gore Vidal, sobre a situação política nos EUA. Ele afirmou que no seu país havia apenas um partido político com duas alas direitistas. Bem, na Inglaterra, na Itália e na Alemanha ocorre a mesma coisa. Não importa para onde você olhe as opções são limitadas porque a margem para a ação política é muito estreita.

Eu não esperaria grandes mudanças imediatas nas manifestações na Europa. Os problemas do nosso sistema capitalista são tão grandes que levará um grande tempo para que qualquer movimento surta efeito. Mas eu acredito que veremos ainda algumas mudanças fundamentais. Não significa que acontecerá nos próximos dois ou três anos, porque nós criamos o hábito de varrer nossos problemas para debaixo do carpete.

Só que o nosso carpete histórico se parece cada vez mais a uma montanha, está cada vez mais difícil de caminhar sobre ele. Isso ocorreu porque, diante de um problema, temos essa necessidade de encontrar uma solução a curto prazo, para um período de dois ou três anos. Basta se lembrar de quantos milagres econômicos ouvimos falar. Eu me lembro o milagre alemão, o milagre japonês e até o milagre brasileiro. Todos evaporaram, porque milagres não resolvem os problemas da nossa sociedade.

Nossa sociedade deverá se confrontar com problemas estruturais e fundamentais, será uma grande mudança de uma ordem social para a outra. Tente projetar isso para o passado. Do sistema feudal para o sistema capitalista essa transformação levou séculos. Séculos de grandes crises. Imaginar que mudar de uma ordem social que foi dominante por três ou quatro séculos para outro pode levar apenas algumas décadas é ingenuidade.

América Latina, terra de esperança “Eu também tenho ressalvas à expressão “capitalismo avançado”. Os países capitalistas avançados são os mais destrutivos. Você chamaria isso de avançado? Não é avançado e em muitos aspectos nos traz de volta à condição da barbárie”.

Quando você pensa na totalidade da América Latina, é impossível negar que houve tremendos avanços políticos. Houve mudanças significativas também em outros aspectos. A primeira vez que eu vim ao Brasil foi em 1983. Após uma conferência em João Pessoa, eu dava uma entrevista numa rádio local quando vi pela janela uma grande aglomeração de pessoas. Durante a pausa para os comerciais, fiquei sabendo que a razão daquela movimentação toda era que em algum lugar perto de João Pessoa havia protestos de pessoas famintas, que não tinham o que comer.

O programa de Lula de combate à fome foi uma resposta a situações como a que eu vi. Hoje, pelo o que sei, não existem mais protestos por comida no Brasil. O aumento do salário mínimo também foi uma contribuição importante. E mudanças também ocorreram na Venezuela, Bolívia, Paraguai e Argentina. A Argentina, por exemplo, deveria ser um daqueles milagres econômicos. Mas o milagre argentino terminou na total falência do País. Eles chegaram até a dolarizar sua economia, abandonaram sua moeda e foram sufocados por isso. Os protestos populares levaram à mudanças significativas na Argentina. Então, a América Latina é um continente onde várias experiências interessantes ocorreram e ainda estão em curso.

Agora, eu não afirmo com isso que a América Latina, assim como o restante do mundo, poderá se isentar de enfrentar esses problemas estruturais que eu já mencionei. E esse é o grande desafio para o futuro. A dimensão muito positiva é que na América Latina existem movimentos extremamente importantes como o campesinos e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). São movimentos sociais que não tem a perspectiva de implorar por favores políticos, mas que tomam a iniciativa e tentam controlar as coisas por si mesmo. Uma das características mais importantes desses movimentos é que eles tentem controlar a situação.

Na América Latina, as soluções também precisam levar em conta um esforço para remediar nossa relação com a natureza. Em um futuro próximo, por exemplo, nós teremos de considerar como colocar energia nos nossos carros. Se você produz carros, eles precisam de energia de alguma maneira. Ao mesmo tempo, nós multiplicamos cada vez mais o número de carros porque a produção não pode parar. Mas, o que precisamos fazer é perceber que a real necessidade das pessoas é o transporte, não os carros. Nós precisamos pensar em meios de transportes adequados, não carros individuais que agridem a natureza.

Eu a considero a América Latina, de longe, o continente mais esperançoso do mundo. Aqui, coisas interessantes vêm acontecendo desde os anos 70. A primeira reação aos movimentos que eclodiam, naquela época, foram as ditaduras. Ao menor sinal de problema, os norte-americanos encontravam um ditador. Eles enviavam os fuzileiros ou achavam algum general que pudesse fazer o trabalho por eles. Hoje os Estados Unidos não podem mais fazer isso, essa fase histórica passou, mas ainda carrega consequencias e repercussões.

Eu acredito que as reais transformações estruturais, que levaram séculos para acontecer do feudalismo para o capitalismo, não demorarão tanto para ocorrer. Por quê? Porque nós não temos séculos. Nosso tempo está se esgotando. E essas mudanças não podem ser pensadas como algo isolado ao “mundo subdesenvolvido”. Nós vivemos em um único mundo. Existem alguns conceitos mistificadores como “terceiro mundo”. Eu sempre rejeitei essa expressão. O que é o terceiro mundo? Eu apenas conheço um. Não é o “terceiro mundo”, mas uma parte integrada do mundo na qual os países são explorados. E a América Latina é o continente mais esperançoso onde as mudanças serão iniciadas, mas não poderão ser concluídas.

Globalização é um conceito utilizado apologeticamente. A realidade da globalização é que existe, na verdade, uma tendência para a integração econômica. Mas, politicamente, nada é resolvido. E hoje ainda prevalece a lógica de confrontar problemas políticos por meio da guerra, violência e destruição. É o que fazem os Estados Unidos. Isso é um grande absurdo porque nada na história da humanidade foi resolvido pela guerra.

Eu também tenho ressalvas à expressão “capitalismo avançado”. Os países capitalistas avançados são os mais destrutivos. Você chamaria isso de avançado? Não é avançado e em muitos aspectos nos traz de volta à condição da barbárie. Rosa Luxemburgo uma vez disse “socialismo ou barbárie”. Eu acrescentaria algo à frase de Rosa Luxemburgo: “barbárie, se tivermos sorte”. Porque a destruição total da humanidade é o que está em nosso horizonte. A tendência é sempre resolver os problemas com guerras e destruições. Na Primeira Guerra, os aliados saíram vitoriosos. Mas o que eles resolveram? Eles criaram Hitler. Por isso eu digo que as decisões estão sendo tomadas às costas das pessoas. Elas nunca antecipam as coisas. Elas nunca imaginam que depois da vitória vem a destruição.

Em 1871, na Comuna de Paris, o que aconteceu foi uma brutal destruição. Bismark, o chanceler alemão, que venceu as tropas francesas anos antes, quando viu as comunas tomando o poder em Paris, ordenou a libertação dos prisioneiros de guerra franceses para destruir a organização. O que aconteceu depois? Três impérios fizeram um pacto para lutar juntos contra esses tipos de distúrbios feitos pela população, caso acontecesse de novo. Isso não é mais possível. Um dos maiores estrategistas de guerra de todos os tempos, general Klausevits, disse uma vez: “a guerra é a continuação da política, só que por outros meios”. Hoje isso é inconcebível. Uma nova guerra mundial acabaria com a humanidade. Essa é a diferença histórica fundamental.

A América Latina é hoje uma das regiões onde se tem mais esperanças, porque as pessoas estão tomando o controle das decisões, assumindo responsabilidades, depois de terem eliminado ditadores.

E como vamos fazer essa transformação? Transformando as pessoas. A exploração da esmagadora maioria das pessoas por poucos não é mais aceito como era antes. No socialismo você não pode fazer isso. Você não aceita uma minoria que controla a política e a economia tomando todas as decisões. Seria um absurdo. Por isso temos que criar uma sociedade da igualdade substancial. A produção de mercadorias e o mercado devem ser as bases dessa equalização. Precisamos ir em direção a um sistema de igualdade substancial, com reorientação, com participação nos processos de decisão, com nossas decisões sobre o que queremos fazer para tornar nossas realizações mais justas, mais igualitárias. Ninguém precisa decidir isso por você.

Em “The Critique of The Gotha Program”, Marx fez a definição do que seriam os estágios inicial e final do socialismo. No primeiro, a distribuição seria feita a cada um de acordo com a sua contribuição para o total do produto social. Na fase avançada, seria de acordo com a sua capacidade ou necessidade. Agora, quem determina o que a gente precisa? Apenas uma pessoa, você mesmo. Hoje, 1% ou 2% da população controla de 40% a 60% dos recursos e riquezas da sociedade. Para mudar isso, será preciso uma cooperação das pessoas pelo mundo. Para produzir e distribuir conforme as necessidades, será preciso criar empresas cooperativas. Isso vai ser a base da sociedade do futuro. E não podemos ter certeza de que essas transformações vão ser feitas apenas dentro da lei. Não estamos enfrentando apenas leis humanas, mas as leis da natureza. A natureza está nos impondo seus limites. Por isso precisamos nos adaptar ao melhor uso dos recursos. Isso vai acontecer em pouco tempo – mas não no meu tempo, infelizmente. As pessoas estão começando a confrontar essa realidade, sobretudo na América Latina.
(Fonte: Matheus Pichonelli e Ricardo Carvalho – Carta Capital)