No início da semana, no bojo da reforma ministerial implementada pelo presidente Lula, o governo federal anunciou uma mudança até então inesperada. A Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), que até então respondia à Presidência da República, perdeu seu status de ministério para ficar sob o controle do Ministério da Justiça. O ex-ministro Nilmário Miranda admitiu que a alteração será prejudicial para as políticas da pasta e as organizações da sociedade civil não demoraram em protestar publicamente sua preocupação. Na quarta-feira (13), o Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos divulgou uma dura nota classificando o retorno da Secretaria dos Direitos Humanos para a estrutura do MJ de regressão.
“Quando o atual governo sinalizou para a sociedade que iria dar atenção aos direitos humanos, fazendo um gesto simbólico de criar uma secretaria de direitos humanos com status de ministério, imaginávamos que seria o primeiro passo de uma caminhada em favor dos direitos humanos. A experiência parou por aí. Só foi um gesto simbólico. A secretaria sofreu com o contingenciamento de recursos, por não ter assento nas decisões políticas e com a falta de estrutura funcional. Ficou só o símbolo. Sua extinção, antes que o resultado de uma avaliação com respeito a sua falta de competência, é um símbolo de que o governo não mais deseja, nem pelo lado da representação simbólica, aproximar-se da sociedade para construir um novo caminho de respeito e proteção aos direitos humanos. Se não é esta a intenção do governo. Há que se mostrar isso com fatos e gestos”, critica o texto.
Em entrevista à Agência Carta Maior, o coordenador do Fórum de Entidades Nacionais, Ivônio Barros, disse que a secretaria não representou um avanço para a luta de direitos humanos no país, porque não teve capacidade técnica e política para desenvolver seu trabalho. O trabalho estaria estagnado. Apesar da presença de Nilmário Miranda ser maior nas ações do governo, isso não teria significado relevância para os próprios direitos humanos.
“O governo não tem prioridade com direitos humanos e nem os vê como uma questão que possa ser importante pra definição da política geral de governo. Já tivemos tempo pra ver que isso não existe”, aponta Barros, que conta que há seis meses o Fórum está pedindo uma audiência com Miranda, sem sucesso.
O secretário-adjunto da SEDH, Mário Mamede, discorda da avaliação das entidades. Ele cita a criação de novos programas do governo federal decorrentes da articulação promovida pela secretaria. Entre eles, o programa de proteção aos adolescentes em risco, o de proteção aos defensores de direitos humanos, o combate à exploração sexual de crianças e adolescentes para fins comerciais, o combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil – reconhecido pela Organização Internacional do Trabalho.
“Aqui e acolá a crítica termina sendo severa. As pessoas, por trabalharem em áreas setoriais ou com intervenções em determinados focos de direitos humanos, dentro da enorme pluralidade de problemas, terminam não tendo a oportunidade de ter uma visão mais ampla sobre o trabalho que a secretaria está desenvolvendo. Não concordo que não tenha havido ampliação da ação política e da capacidade de articulação, tanto em nível institucional, interministerial e junto a estados e municípios, e outros órgãos do Estado, como o Poder Judiciário e o Ministério Público. Apesar da crise e da contenção de gastos da política econômica, de 2000 pra cá houve uma ampliação em quatro vezes do orçamento disponível e da execução orçamentária, afirma Mamede. “É importante que tenhamos essa força de tensionamento, para pressionar por políticas públicas. Isso demonstra uma capacidade de transformação dos movimentos sociais que sempre deve estar em curso. Mas não concordamos com essa avaliação”, diz.
Risco iminente
“Porém, o espaço ligado ao presidente ainda tem um simbolismo. Para montar estrutura e ter capacidade técnica e política, seria mais fácil se a secretaria mantivesse seu status de ministério, do que respondendo ao Ministério de Justiça, ligada à questão de segurança pública. Lamentamos por isso. Achamos que pode haver uma dificuldade de interlocução com os outros ministérios a partir de agora. Primeiro, vamos precisar vencer as etapas dentro da Justiça pra depois ir conversar com as demais pastas”, acredita Barros.
O Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos, integrado por diversas entidades civis e especialistas ligados à área, também divulgou uma nota nesta sexta-feira. E a deputada Iriny Lopes (PT-ES), Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, soltou um comunicado criticando a decisão tomada sem consulta aos segmentos organizados do setor e dizendo que, com esta reforma ministerial, o governo federal transmitiu à sociedade e aos agentes políticos uma mensagem de redução da importância que atribui aos direitos humanos. “Essa decisão frustra a esperança de muitos que, como nós, vêm lutando para elevar o patamar dos direitos humanos no Brasil, condição básica de avanço do processo civilizatório e do aperfeiçoamento das instituições democráticas”, declarou Iriny.
Diante da nova conjuntura, o objetivo das entidades é trabalhar para que o governo não volte a definir prioridades baseado somente em interesses econômicos do setor. E para que dê continuidade à pauta aprovada na IX Conferência de Direitos Humanos, realizada no ano passado, que atualizou e acrescentou ao II Plano Nacional de Direitos Humanos uma série de ações que são exigências da sociedade brasileira. A idéia, desde o princípio, é colocar na centralidade da política nacional os homens e mulheres, as crianças, os idosos, indígenas, homossexuais, lésbicas, transgêneros, meninos e meninas de rua, pessoas com transtornos mentais, com deficiência, migrantes, negros e negras afrodescendentes, ciganos, adeptos de religiões afrobrasileiras e demais grupos excluídos.
“Já estamos trabalhando pra marcar uma audiência com o Ministro da Justiça para ver em que podemos avançar. Pra gente, é uma incógnita o que pode acontecer a partir de agora. O ministro em si é uma pessoa sensível à questão dos direitos humanos. Está muito próximo do presidente e tem se fortalecido neste período de crise política. Pode ser que nossas demandas gerais tenham um tratamento melhor. Mas pode ser que como o ministério tem um contencioso grande com a área de segurança, talvez a opção seja por colocar os direitos humanos dentro deste mesmo pacote. E aí é um retrocesso, porque direitos humanos são algo muito maior. Precisamos pautar a questão da segurança a partir do direitos humanos, e não o contrário”, esclarece Barros.
Na próxima quarta-feira, de volta de viagem, o presidente Lula deve formalizar a saída de Nilmário Miranda da SEDH – ele deixa o governo para se candidatar à presidência do Partido dos Trabalhadores em Minas Gerais – e anunciar medidas de funcionamento da secretaria dentro do MJ. “Pelo respeito e confiança no Presidente da República, tenho convicção em relação à prioridade da política de direitos humanos, para que seja uma política de Estado. Essa é uma roda que só roda pra frente num Estado democrático, quando existe uma gestão preocupada com a dignidade humana. Havendo qualquer readequação da secretaria, não haverá retrocesso”, garante Mamede.
A vontade da sociedade civil agora é garantir um nome ligado à área, sensível aos direitos humanos e com capacidade de diálogo com o ministro Márcio Thomaz Bastos para substituir Nilmário Miranda. Nascido em Belo Horizonte, ele iniciou sua atuação política na década de 60, participando do movimento pelas reformas de base. Depois do Golpe de 64, engajou-se nas lutas contra a ditadura. Foi preso pela polícia política em São Paulo, sendo posteriormente condenado pela Lei de Segurança Nacional. Cumpriu pena como preso político durante três anos e um mês. Participou então dos movimentos pela criação do Partido dos Trabalhadores e foi um dos seus fundadores.
Em 1990, foi eleito Deputado Federal pelo PT de Minas Gerais, sendo reeleito para outros dois mandatos consecutivos. Requereu à Câmara dos Deputados a criação de uma Comissão Externa para auxiliar os familiares dos mortos e desaparecidos políticos durante a ditadura militar em sua luta para obter informações e reparação por parte do Estado. O trabalho contribuiu para a criação de uma Comissão Permanente de Direitos Humanos na Câmara, depois presidida por Nilmário Miranda. A Comissão Permanente de Direitos Humanos desempenhou papel decisivo na aprovação de várias leis, entre elas a que tipificou o crime de tortura, a que instituiu o Estatuto dos Refugiados e a que criou o programa de proteção a testemunhas.
Fonte: Agência Carta Maior (Bia Barbosa)