Helio Batista Barboza, do Sintrajud. Na foto, Sintrajusc em greve contra a proposta que congelou gastos públicos por 20 anos
A última semana de 2019, na qual o Congresso Nacional aprovou o orçamento do próximo ano, marcou o aniversário de três anos da Emenda Constitucional 95, que congelou os gastos públicos por até duas décadas.
A data é significativa também porque a partir de 2020 o Poder Executivo não poderá mais utilizar até 0,25% do seu próprio limite de gastos para compensar a despesa excedente do Legislativo e do Judiciário, conforme previa a Emenda para os três primeiros anos de sua vigência.
Enviada ao Congresso pelo então presidente Michel Temer (MDB), a Emenda foi promulgada no dia 15 de dezembro de 2016, três meses e meio após o impeachment de Dilma Rousseff (PT).
Desde então, a despesa primária de cada ano só pode aumentar de acordo com a inflação medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulado nos 12 meses até junho do ano anterior. Para 2017, primeiro ano de vigência da Emenda, o aumento da despesa primária foi definido em 7,2%, que era a previsão para o IPCA de 2016 quando a Emenda foi aprovada (o índice acabou ficando em 6,29%). Em 2020, o aumento não poderá passar de 3,37%.
O “teto de gastos” vale para os orçamentos fiscal e da seguridade social e para todos os órgãos e poderes, mas não para as despesas com a dívida pública. Dentro de cada poder, a Emenda determinou a fixação de limites por órgão, de forma a congelar, por exemplo, os gastos de cada tribunal do Judiciário Federal.
Nesses três anos, a Emenda 95 tem sido a justificativa para vedar a realização de concursos e a nomeação de servidores, a revisão de salários, a criação de cargos e até a compra de insumos e a contratação de fornecedores.
Em todos os tribunais, o teto de gastos está por trás de grande parte da sobrecarga dos servidores, da redução do quadro de trabalhadores terceirizados, da pressão para “fazer mais com menos” e da ausência de investimentos em melhoria das condições de trabalho.
No restante dos serviços públicos, a Emenda 95 também continua a afetar dramaticamente o funcionamento dos órgãos e o atendimento à população. Para a saúde e a educação, que contam com as vinculações de receitas determinadas pela Constituição, a Emenda começou a valer em 2018, mas nem por isso seus efeitos são menos perversos. Exemplo disso foi a suspensão das bolsas de pós-graduação da Capes e do CNPq, entre abril e setembro deste ano.
Suspensão do projeto de 1988
O impacto da Emenda 95 sobre os serviços públicos é ampliado pela crise econômica do país, conforme explica a professora Cynara Monteiro, do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará. “É sabido que em cenários de grave crise a pressão sobre os serviços públicos aumenta muito”, lembra a docente, citando o exemplo dos antigos usuários de planos de saúde que passam a procurar o SUS.
Em artigo publicado recentemente, Cynara Monteiro defende que a Emenda 95 significou uma suspensão do projeto constituinte de 1988. “A Constituinte aprovou um direcionamento de todos os poderes para a construção de um Estado social de direitos”, recorda. “A Emenda limita o investimento em todo aquele núcleo de deveres que a Constituição atribuiu ao Estado”, aponta ainda a especialista.
Todas essas restrições são reforçadas, segundo ela, pelo fato de a Emenda 95 não prever sequer uma revisão do teto de gastos em face do aumento populacional ou até de um eventual crescimento da economia. A única revisão prevista é a que ocorre a partir do décimo ano de vigência da Emenda, quando o presidente da República poderá rever o critério uma vez a cada mandato, enviando um projeto de lei complementar ao Congresso Nacional.
“Impacto recessivo”
Se representa um retrocesso em termos de direitos sociais, a Emenda 95 também não resolve os problemas econômicos que se propõe a enfrentar, diz o economista Ricardo Gonçalves, pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (Cecon) da Unicamp. “É uma aposta em uma estratégia equivocada sob todos os aspectos”, sentencia Ricardo. “O Estado está contribuindo não só para a deterioração dos serviços públicos, mas também para a deterioração do crescimento econômico e de suas próprias receitas.”
Vista por esse ângulo, a Emenda 95 até agrava a crise. “Estudos mostram que gastos com saúde, educação e transferências diretas (como o Programa Bolsa Família) apresentam elevado ‘efeito multiplicador’, isto é, são de extrema importância para recuperar o crescimento e consequentemente estabilizar a situação fiscal”, explica o economista da Universidade Estadual de Campinas.
É o mesmo raciocínio do professor de Economia José Luiz Oreiro, da Universidade de Brasília (UnB). Em audiência pública no Senado, no final de novembro, Oreiro afirmou que a Emenda 95 perdeu a razão de existir e defendeu sua revogação.
Ele chamou a atenção para o fato de que o cumprimento do teto de gastos só foi possível com a redução das despesas discricionárias (sobre as quais o governo tem liberdade de decidir), o que inclui os investimentos. “É isso que está levando ao risco de shutdown (fechamento) das atividades governamentais em 2021”, disse Oreiro.
Analisando as despesas discricionárias do governo desde a promulgação da Emenda 95, Ricardo Gonçalves aponta que os dispêndios caíram de R$ 157,4 bilhões em 2016 para R$ 133,7 bilhões em 2018. Em 2019 foram liberados R$ 92,7 bilhões (já executados R$ 81,6 bilhões até outubro) e para 2020 estão programados apenas R$ 89 bilhões. “Dado que ainda estamos ‘andando de lado’, muito perto do ‘fundo do poço’, qualquer estímulo pode gerar algum crescimento, mas essas reduções das discricionárias sem dúvida terão impacto recessivo”, conclui.
Para o economista da Unicamp, no longo prazo o governo terá de flexibilizar as despesas obrigatórias ou a própria regra do teto de gastos. “As despesas com a Previdência continuarão aumentando apesar da recente ‘reforma’ e, caso a economia volte a crescer, as despesas obrigatórias do Estado tenderão a se elevar, tornando impossível a manutenção dessa regra”, aponta.
Se nada for feito, muito antes do prazo de 10 anos para sua revisão a Emenda 95 pode inviabilizar o funcionamento do Estado, de acordo com ambos os economistas. Além disso, ao reduzir salários de servidores, o Estado estaria retirando uma importante fonte de demanda da economia. “A inflação tenderia a permanecer baixa, mas não haveria estímulos suficientes para alavancar investimentos privados”, explica Ricardo.
Oreiro, por sua vez, citou dados do FMI durante a audiência no Senado para mostrar que os gastos com o funcionalismo no Brasil estão estáveis como proporção do PIB há mais de 20 anos e são inferiores aos do Chile, por exemplo – modelo reivindicado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.
“A emergência fiscal brasileira é autoimposta”, afirmou. “A história que nos contaram é que o teto de gastos seria um mecanismo para explicitar a necessidade de ‘reforma’ da Previdência. Pois bem, ela já foi aprovada; logo, o teto perdeu sua funcionalidade.”
Gatilhos na Constituição
Os projetos do governo Bolsonaro, entretanto, vão no sentido contrário. Ricardo Gonçalves adverte que a proposta de emenda constitucional 186, a chamada PEC da Emergência Fiscal, aprofunda os efeitos da Emenda 95. Entregue ao Senado pelo ministro Paulo Guedes e o presidente Jair Bolsonaro no começo de novembro, a PEC faz parte do Plano ‘Mais Brasil’ e propõe introduzir na Constituição uma série de gatilhos para controlar os gastos públicos e o endividamento do governo.
Se atingidos certos limites, a União ficaria autorizada a reduzir jornada e salários de servidores e não poderia realizar concursos ou qualquer tipo de admissão de pessoal, nem criar despesas obrigatórias. Para estados e municípios, os gatilhos seriam acionados caso as despesas correntes superem 95% das receitas correntes. “Onze estados já se encontram nessa situação”, observa Ricardo.
“A estratégia da equipe econômica subverteu a lógica de gestão dos recursos e serviços públicos, que passou a se comprometer com o principal objetivo de cortar despesas, independentemente das graves consequências sociais que produzirão”, afirma.
Do Sintrajud com edição do Sintrajusc