“É ilícito o desconto”. Este foi o voto da Juíza Maria de Lourdes Leiria, do TRT, uma das derrotadas na Sessão Administrativa que discutiu o desconto dos dias parados na Greve do PCS no ano passado. Sua intervenção sintetizou o pensamento da classe trabalhadora brasileira que, com Greves, lutou contra a ditadura e ajudou a escrever na Constituição de 1988 que a Greve é um direito dos cidadãos.
“Eu entendo que não se deve descontar salário de quem faz greve, que é um direito fundamental. Não posso acreditar que alguém exerça um direito fundamental e fique sem a sua remuneração. Eu sou contra o desconto. Para mim é ilícito o desconto, porque não pode o trabalhador exercer esse direito fundamental e ficar sem o direito à alimentação”, disse ela. Sua voz reproduziu o que está escrito no artigo 9º da Constituição.
Se a Greve é um direito, não pode ser penalizado quem o exerce, mas sim quem impede ou dificulta o seu exercício. Ou será que cortar salário não é “constranger o empregado ao comparecimento ao trabalho”, ato expressamente proibido pela lei que não impõe desconto dos dias parados. Ao contrário, a Lei de Greve diz que as “relações obrigacionais” durante o período devem ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou decisão da Justiça. Acordo é a opção prioritária sempre, como muito bem pontuou a Juíza Águeda Pereira e defendeu a relatora Viviane Colucci, que entende ser incabível o desconto antes de esgotadas as possibilidades de entendimento ou decisão judicial.
A Juíza Maria de Lourdes não é uma analfabeta funcional nem uma tresloucada. É uma Juíza do Trabalho. Ela sabe que o Direito de Greve dos servidores deveria ser definido por uma lei que nunca foi editada e que o Poder Judiciário, ainda que não legisle, mandou aplicar norma do setor privado ao público. Os tribunais ditos competentes não sabem exatamente o que fazer com tal competência. Desde que o assunto lhe caiu nas mãos, o STJ tem mudado de idéia a cada julgamento num movimento pendular de imprevisível desfecho que começou por admitir, em liminar, que apenas 20% (!) da categoria poderia parar e terminou por abdicar da sua competência, remetendo as Greves nos estados aos regionais federais. Dizem que juízes federais não possuem experiência em conflitos trabalhistas, mas a experiência, quando marcada por vícios, é pior do que a falta dela, o que fica evidente quando vemos juízes “do trabalho” vestidos de patrões, como verdadeiros juízes “do capital”.
Enquanto a Lei de Greve diz que “É vedado às empresas adotar meios para constranger o empregado ao comparecimento ao trabalho, bem como capazes de frustrar a divulgação do movimento”, alguns juízes do trabalho se ocupam de assumir o trabalho sujo do constrangimento ilegal ao deferir dezenas de interditos proibitórios a cada Greve que lhes cai nas mãos, a pedido de empresários e banqueiros.
Analfabeto funcional é a pessoa que conhece as letras, lê e escreve frases simples, mas não entende o sentido das palavras. Juízes obviamente não são analfabetos funcionais. A explicação, portanto, para que muitos deles não consigam entender o que está escrito na Constituição – e que a Juíza Leiria, por exemplo, e parte dos seus colegas, entende com facilidade – certamente é outra. Ao contrário dos analfabetos funcionais que nada vêem nas palavras, alguns juízes tendem a enxergar muito além dos textos legais.
Pior que o analfabeto funcional, diria Brecht se conhecesse a recente expressão, continua sendo o analfabeto político. A disfunção que via de regra acomete alguns juízes não é cognitiva, mas ideológica. Acreditam eles que a nobre função de servir ao Estado se confunde com a de servir à classe dominante. Nosso Estado é capitalista, então ainda que a Justiça seja do Trabalho, ao Judiciário não cabe fazer Justiça, mas conservar a ordem estabelecida pelo Capital, que reza a ideologia dominante.
Mas se nos orgulhamos de viver num regime em que o povo (DEMO) exerce ou deveria exercer o governo (CRACIA), o Poder Judiciário deveria se ocupar de fazer Justiça e não de procurar significados ocultos além das palavras. Justiça é fazer valer a Democracia. É fazer valer a vontade da maioria e não de alguns senhores ricos e suas pessoas jurídicas. A República do Brasil tem como fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e, por objetivos fundamentais, construir uma sociedade livre, justa e solidária, além de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. É o que dizem o primeiro e o terceiro artigos da Constituição. É ler e cumprir. Nossas congratulações às juízas e juízes do Trabalho que acreditam na possibilidade de fazer Justiça.
Fonte: Análise/Sintrajusc