Para especialistas, o alarde devido à hipotética moratória dos EUA é infundado frente aos reais problemas da economia brasileira
Em meio a negociações entre a Casa Branca e o Congresso dos EUA para ampliar o teto da dívida pública do país para além dos atuais US$ 14,3 trilhões, foi divulgada a informação, no dia 18 de julho, de que o Brasil é o quarto maior investidor em títulos da dívida estadunidense.Segundo o Tesouro dos EUA, o Brasil teve a segunda maior expansão de aplicação na dívida deste país – ficando atrás da China – entre maio de 2010 e maio de 2011, aumentando em 30,9% a aplicação.
Assim, as reservas internacionais brasileiras passaram a ser compostas em dois terços por este tipo de papel: dos US$ 340 bilhões de reservas, o país tem US$ 211,4 bilhões em títulos da dívida dos EUA.Entretanto, estes papéis, considerados historicamente como os de maior liquidez do mundo – por serem vistos como os mais confiáveis para servir de garantia – aparecem agora no noticiário internacional como investimentos de alto risco. Isto porque as agências de classificação do cassino financeiro internacional ameaçam – caso o Congresso dos EUA não aprove a elevação do limite de endividamento do país até o dia 2 de agosto – rebaixar a nota dos títulos do Tesouro estadunidense, com vencimento em agosto, para o nível “junk”, ou seja, altamente especulativos, com risco de calote.
Erro brasileiro?
Teria o Brasil errado drasticamente em seus investimentos? Para Paulo Passarinho, economista, membro do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro e apresentador do programa Faixa Livre, não. Apesar de discordar da política macroeconômica adotada pelo governo brasileiro – na qual a preferência por constituir a maior parte das reservas internacionais do Brasil em títulos do Tesouro estadunidense é só uma de suas variáveis – ele aponta que não reside aí o problema:
“Esta é a aplicação mais segura e a prova disso são as reservas chinesas nos títulos americanos. O sonho de todo e qualquer rico do mundo é denominar todos os seus valores em dólares. Lembro que mesmo no auge da crise de 2008 houve uma corrida fenomenal para os títulos americanos. E o olho do furacão era os EUA.”
Passarinho enfatiza que não se pode confundir as dificuldades e facilidades momentâneas de uma economia com a real situação econômica.
“A segurança dos contratos de uma moeda é garantida, na verdade, pela força econômica e militar de um país. E os EUA ainda são a maior força.”
Na mesma linha, a coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida, Maria Lucia Fatorelli, relembra que o aumento do limite de endividamento dos EUA já foi aprovado dez vezes. “Isto não é uma novidade. Que diferença faz uma dívida de 110% do PIB ou uma de 115%? Ela já está para lá do limite”, salienta.
Outra razão apontada por Fatorelli para refutar uma moratória dos EUA neste momento consiste no fato de o próprio Banco Central dos EUA (FED) ter boa parte da dívida em suas mãos: “Eles têm essa gordura para queimar, ao invés de entrar em default [moratória] com outros países”.
O fundo político do problema – Apesar dos sucessivos aumentos do endividamento dos EUA sugerirem que o país não faz mais do que aproximar-se do colapso de seu sistema financeiro, tanto Passarinho como Fatorelli creem que o alarde atual nada mais é do que um instrumento de pressão útil para grandes especuladores e, sobretudo, para a oposição republicana ao governo Obama. Em um cenário onde o presidente lança sua campanha à reeleição 19 meses antes do pleito, nada mais crível.
“O que está em jogo são as pressões do Partido Republicano por uma saída negociada com o governo Obama para o inevitável, a elevação do endividamento. O problema do teto vai ser resolvido, a questão é como. Os republicanos querem preservar os ricos de impostos e querem uma reforma fiscal com cortes nos gastos sociais, muito ativados no governo Obama depois da crise de 2008”, diz Passarinho.
O fundo político-eleitoral – e não econômico – evidencia-se no curso das negociações. Os republicanos propuseram aumentar o teto da dívida até o fim de 2011, o que lhes permitiria seguir incidindo sobre esta pauta ainda antes das eleições presidenciais de novembro de 2012. A Casa Branca não topa nenhum acordo que não estenda o teto, pelo menos, até 2013.
Nossa dívida – O problema é como o Brasil se endivida para ser credor dos EUA, dizem os especialistas. Mas esta pauta não ganha repercussão no país.
Ser credor dos EUA parece realmente não ser o problema central da economia brasileira. Paradoxalmente, o fato do Brasil expandir suas aplicações na dívida estadunidense e, ao mesmo tempo, ter sua avaliação melhorada pelas agências de classificação de risco é emblemático neste sentido. Isto não é confiar às tais agências um atestado de boa economia, pelo contrário. É perceber que, assim como o rebaixamento dos papéis dos EUA parecem nos dizer pouca coisa, há de se ver com suspeita a avaliação positiva que fazem do Brasil. De acordo com Maria Lucia Fatorelli, o elevado volume de reservas internacionais do Brasil nos EUA é construído em cima de emissão de dívida interna aos maiores juros do mundo. Ela exemplifica:
“Um banco, com agências em todo o mundo, faz uma remessa de bilhões para uma agência no Brasil. O Banco Central (BC), que diariamente controla o volume de moeda em circulação, retém a parte destes recursos que considera excessivo. Ele entrega títulos da dívida pública, nas chamadas operações de mercado aberto, em troca destes dólares. Isto porque, de acordo com a teoria econômica, excesso de moeda circulando provoca inflação. Os dólares arrecadados serão reinvestidos em reservas internacionais, mas ninguém paga os juros do tamanho que o Brasil paga quando emite sua dívida, muito menos os EUA que pagam juros próximos a zero”.
A taxa de juros do Brasil, definida pela Selic, sofreu um novo aumento no último dia 20, passando para 12,5%. Segundo Fatorelli, no auge da crise na Grécia, os juros não chegaram a 7%. Para piorar, o crescimento exponencial da dívida brasileira também foi impulsionado pela desvalorização do dólar frente ao real desde 2009 e a falta de controle do fluxo de capitais.
“Desde 2006, todo rendimento auferido por estrangeiro com título da dívida brasileira, ainda que seja um banco, é isento de imposto de renda. Então, em uma tacada os estrangeiros, ainda que seja um brasileiro lá fora, têm um a aplicação num título que paga o maior juro do mundo, que dá um ganho cambial – porque o dólar desvalorizou muito, pode fugir a hora que quiser e ainda tem isenção tributária. O prejuízo do BC com estas operações em 2009 foi de R$ 147 bilhões e em 2010 R$ 50 bilhões.”
A responsabilidade do Plano Real – Para o economista Paulo Passarinho, este processo de endividamento irresponsável da União foi consagrado pelo Plano Real, sobre o qual só se destaca atualmente a sua “virtude” de controlar a inflação, sem contabilizar as perdas.
“Quando FHC, em 1994, era ministro da Fazenda, a dívida interna estava em torno de R$ 34 bilhões. Quando assume a presidência, janeiro de 1995, ela sobe para R$ 62 bi. Mas ainda era baixo, cerca de 12% do PIB. Quando ele deixa o governo essa dívida está próxima de R$ 700 bi. E o Lula deixa essa dívida com um montante superior a R$ 2 trilhões. Isso é um custo embutido no ‘sucesso’ do Plano Real.”
Para “fechar esta conta”, Maria Lucia Fatorelli explica que a Lei de Responsabilidade Fiscal simplesmente não estabelece limites para os prejuízos causados pelas operações da política monetária do BC.
“Ao contrário, diz que se os recursos do orçamento não são suficientes, o Tesouro está automaticamente autorizado a emitir mais dívida para cobrir esse prejuízo. Em 2008, por exemplo, o Lula mandou a medida provisória 435, que virou lei, autorizando o Tesouro a lançar mão de tudo que sobra em toda e qualquer rubrica orçamentária não gasta durante o ano para pagar a dívida.”
Há saída possível – Empenhada na construção de um movimento pela Auditoria Cidadã da Dívida, Fatorelli afirma só acreditar numa mudança do quadro atual a partir do conhecimento da realidade e de uma pressão social consciente para modificá-la. Apesar de enxergar o Brasil “anestesiado” para levantar-se contra a sangria vertiginosa de seus recursos, a economista destaca que a luta popular contra o sistema financeiro internacional tem registrado avanços com o estouro da bolha da dívida pública em distintos países, cujos endividamentos possuem distintas naturezas.
“Já foi formada uma comissão de auditoria na Grécia e na Irlanda. Agora estamos em contato com Portugal. Na Islândia, houve um duplo plebiscito popular para não pagar a dívida, retratado no filme Inside Job. E como o sistema financeiro sabe de suas fraudes, eles recuaram e os islandeses obtiveram um descontaço na sua dívida. O Equador anulou 70% da dívida, porque não é possível que essa conta seja continuamente transferida para os trabalhadores”, concluiu.
Fonte – BRASIL DE FATO ( Vinicius Mansur, de Brasília/DF)