Bruno Chapadeiro, professor do PPG em Psicologia da Saúde da Umesp
Tenho dito que muitos setores farão desse “limão uma limonada”, em referência às atuais formas de trabalho que temos experimentado durante esta pandemia de covid-19. O que é esse famigerado “novo normal” se não somente a naturalização de velhos preconceitos e precarizações do trabalho que antes já aconteciam, mas de formas “sutis”?
Segundo estudo da consultoria Marz, 86% das empresas brasileiras compulsoriamente colocaram sua força de trabalho inteira, ou parte dela, trabalhando em casa. Os mais recentes dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o potencial estimado de teletrabalho atualmente no Brasil passa dos 20 milhões.
Outro estudo, coordenado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), mediu o que chamaram de “índice de viabilidade do teletrabalho”, apontando que, sim, o teletrabalho será uma tendência crescente daqui pra frente, porém, há significativas discrepâncias socioeconômicas entre os países, o que faz com que tal modalidade de trabalho nem sempre seja uma opção viável para, por exemplo, os pobres sem acesso à internet, os jovens sem formação universitária e as mulheres com sobrecargas nas tarefas domésticas.
Quanto às últimas, o próprio IBGE em 2019 apontava que mulheres que trabalhavam fora de casa dedicavam 8,2 horas por semana a mais a tarefas domésticas que homens também ocupados. Hoje nos países europeus esse número já chega a 12 horas, segundo estudo do Boston Consulting Group. A última pesquisa Datafolha, realizada entre 2 e 6 de julho, feita com 700 moradores da cidade de São Paulo, SP, demonstra que 63% delas tiveram aumento de tarefas em casa.
No cenário atual, o tempo de vida é colonizado pelo tempo de trabalho. A invasão da esfera da produção à da reprodução social tem demonstrado que, por exemplo, os limites entre os horários de trabalho ou lazer e as interrupções dos familiares sejam potenciais fontes de conflito, além da expectativa no/na teletrabalhador(a) (principalmente na teletrabalhadora) de que assuma mais responsabilidades quanto às demandas domésticas, assim como, também, se acentuam as dificuldades no trato com as tecnologias.
Uma recente pesquisa da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV Eaesp) mostrou que 56% de trabalhadores têm problemas para conciliar os dois universos. Vivemos uma aceleração e compressão do tempo que tem nos levado a uma “sociedade do cansaço”.
As novas relações flexíveis de trabalho promovem mudanças significativas em nossa sociabilidade, nossa forma de lidar com o tempo, e com a auto referência pessoal, tendo em vista que alteram a relação tempo de vida/tempo de trabalho. Há resultados preliminares de pesquisas sendo feitas nesse momento que têm apontado aumento nos relatos de sintomas de ansiedade, depressão, insônia e irritabilidade. Para citar algumas, o já referido estudo da FGV, relata que 45,8% das pessoas perceberam um aumento da carga de trabalho e encontraram mais dificuldade para manter o foco.
Outra pesquisa, realizada pela rede social de negócios, LinkedIn, mostrou que 62% se dizem mais ansiosos e estressados com o trabalho do que antes. 68% têm trabalhado pelo menos uma hora a mais por dia, com alguns (21%) chegando a trabalhar até 4 horas/dia a mais, e com enormes dificuldades em se desligar das atividades laborais após o expediente e aos fins de semana.
Temos uma pesquisa intitulada projeThos covid-19, em que nos propusemos dar visibilidade às vivências e aos sentimentos relativos ao trabalho nesse contexto da pandemia do novo corona vírus. O que mais nos chegam de relatos, além dos medos e das angústias que esse momento tem gerado, é sobre a dificuldade das pessoas em conciliar as rotinas de trabalho e vida doméstica.
O tal homeschooling, assim como a busca por atividades de entretenimento dos filhos, tem levado muitas mães a darem entrada no ponto virtual de trabalho no período noturno ou mesmo durante a madrugada, para conseguirem dar conta de todas as demandas. Nos chamou muito a atenção o relato de uma jornalista em que ela diz: “Me sinto cansada. Estou trabalhando 3 turnos, sendo que sou contratada para atuar 40 horas. Muito difícil estabelecer limites quando trabalhamos de forma online, com Whatsapp o tempo todo. Minha casa não é mais um lugar de descanso”.
Nunca precisamos falar tanto – e regulamentar – o “direito à desconexão”, a fim de evitar o que se cunhou “tecnoestresse”. Tais preocupações, inclusive, estão presentes no PL 3.512/2020, que tramita atualmente no Senado Federal e que objetiva detalhar as obrigações do empregador na realização do teletrabalho adaptado ao momento recente (ou seja, visa ampliar o art. 75-D do Capítulo II-A da CLT.
Sim, o trabalho é a transformação de natureza (seja da ordem física ou subjetiva), como também faz parte de sua teleologia a socialização entre os seres humanos. Uma vez provocados(as) pelo ambiente, damos respostas que desenvolvem nossas funções psicológicas superiores. É no contato com o Outro que nos fazemos humanos, demasiadamente humanos. O afeto físico reduz o estresse ao acalmar nosso sistema nervoso simpático, que durante momentos de preocupação libera hormônios de estresse prejudiciais ao nosso corpo.
Estudos da área da psiconeurologia da Universidade de Stanford nos demonstram que temos caminhos cerebrais que são especialmente dedicados a detectar o toque afetuoso, sendo este o modo como nossos sistemas biológicos comunicam um ao outro que estamos seguros, que somos amados e não estamos sozinhos. Por esse prisma, não há mediação por telas que seja suficiente para desenvolvermos nossa humanidade. Por outro lado, não é de hoje que temos também assistido à destruição dos coletivos de trabalho com as reestruturações e o enxugamento dos ambientes de trabalho, assim como uma ode ao trabalho individualizado, algo que tem nos levado, inclusive, a discutir as chamadas patologias da solidão/isolamento. Falarmos sobre a pós-modernidade pós-pandemia é falarmos do agora. Parafraseando Clarice Lispector em “Um Sopro de Vida”: “nunca a vida foi tão atual como hoje. Por um triz é o futuro”.
Texto originalmente publicado no site Multiplicadores de Vigilância em Saúde do Trabalhador / Sintrajufe/RS