Lei orgânica da magistratura é resquício da ditadura
No sertão nordestino contam-se muitas histórias para reforçar o estigma dos vaqueiros enquanto espécie diferenciada do gênero humano. Diz-se, por exemplo, que um fazendeiro tem dois empregados rurais e um vaqueiro, ou seja, o vaqueiro não se inclui na categoria de empregado rural. Em outro caso, conta-se que um ancião, com muita dificuldade de enxergar, estaria sentado na varanda da casa e avistou vultos ao longe. Daí, perguntou a uma criança ao seu lado: – Quem vem lá? A criança, sem pestanejar, respondera: – Vem uma mulher, um menino, um homem e um vaqueiro. Assim, o vaqueiro é uma espécie diferenciada e não uma coisa e nem outra. Aliás, na maioria das vezes, não é nada mesmo. É um vaqueiro e pronto!
E o que tem a ver a magistratura brasileira como histórias de vaqueiro e espetos de pau? Um pouco de história permitirá a compreensão deste devaneio.
Pois bem, por mais absurdo que possa parecer, a Lei Orgânica da Magistratura Brasileira, mesmo com este nome pomposo, é nada mais nada menos do que a Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979. Assim como eu, sinta náusea e indignação ao saber que esta lei foi assinada pelo ditador de plantão, Ernesto Geisel, e seu ministro da justiça, Armando Falcão. Sim, o mesmo da famigerada “Lei Falcão”, (Lei 6369/76), que restringiu a propaganda eleitoral nos meios de comunicação para evitar a vitória da oposição nas eleições de 1976.[1] Sim, o mesmo Armando Falcão da Lei de Segurança Nacional (Lei 6620/78), que estabeleceu uma infinidade de crimes contra a “segurança nacional” e serviu de instrumento da ditadura e do poder judiciário para prender e condenar quem protestava contra o regime. É ou não é para sentir náusea?
Como todos sabemos, a ditadura caiu e nossa transição para a democracia, depois de muita luta, sangue e mortes, deu-se no barco da Assembleia Constituinte de 1987/88, que resultou na Constituição de 1988. Boa ou ruim, prolixa ou não… É a que temos e ainda bem que temos uma Constituição nesses tempos sombrios de conservadorismo e fundamentalismo. Aliás, parafraseando o ex-presidente Lula, observando a conjuntura atual, “nunca antes na história desse país, uma Constituição que tem as garantias fundamentais como cláusulas pétreas foi tão importante”.
Seguindo a história, a ditadura caiu, fizemos a transição, promulgamos uma Constituição, mas a Lei Orgânica da Magistratura continua a mesma. Faz lembrar um comercial de shampoo de tempos atrás em que a protagonista dizia: – Você se lembra da minha voz? Continua a mesma, mas os meus cabelos, quanta diferença. No caso da magistratura brasileira, o discurso seria da própria Loman como protagonista do comercial: – Ei, magistrados, vocês se lembram de meu autoritarismo? Continua o mesmo…
Enquanto isso, as demais carreiras jurídicas discutiram seus papéis em face da nova ordem constitucional, elaboraram suas leis orgânicas e são regidos, como não poderia ser diferente, pelos princípios constitucionais insertos na Constituição de 1988. No nosso meio, absurdamente, o STF e AMB não conseguiram, depois de quase 26 anos, discutir e oferecer um projeto de lei ao congresso nacional para adequar a carreira da magistratura ao projeto constitucional oferecido à nação na forma da Constituição de 1988. É comprovação evidente do adágio popular: “casa de ferreiro, espeto de pau”.
Somos, portanto, tal qual os vaqueiros do sertão, uma categoria sui generis, pois somos regidos por uma lei autoritária da lavra da ditadura militar, que nem de longe pode ser recepcionada pela Constituição de 1988, embora alguns insistam, inclusive Tribunais e suas Corregedorias, em continuar amordaçando e sufocando a magistratura brasileira com base em dispositivos da Loman, enquanto a Constituição garante a todos a liberdade de expressão e manifestação do pensamento. [2]
Por conta disso, o Juiz de Direito do Rio de Janeiro, João Batista Damasceno, sofre perseguição implacável da Corregedoria da Justiça do seu estado pelo simples fato de exercer a garantia constitucional da liberdade de expressão. Damasceno já foi alvo de representação por ter pendurado em seu gabinete uma charge do cartunista Carlos Latuff, que denuncia, em forma de arte, o genocídio contra o povo pobre do Rio de Janeiro. Recentemente, o Juiz Damasceno foi alvo de nova representação por ter gravado vídeo com este texto: “A democracia se caracteriza pelo poder do povo. Não só através de seus representantes, mas também diretamente. Ocupando a cidade é o que dá a exata dimensão da cidadania. A criminalização dos manifestantes, dos movimentos sociais é uma expressão da violência ilegítima do Estado; da truculência contra a democracia”.Felizmente, para o bem da democracia e o do Estado de Direito, as representações foram arquivadas por ampla maioria.
Retornando à história dos vaqueiros que não são uma coisa e nem outra, o sentimento da magistratura brasileira que tem na Constituição de 1988 a ferramenta principal de trabalho, é de que também nós, os magistrados, estamos ainda na condição híbrida de seres especiais que não são cidadãos com direito ao exercício das garantias constitucionais e, de outro lado, não podemos e nem devemos ser, por força da nova ordem constitucional, capachos de qualquer governo, tribunais ou corregedorias.
Por fim, o papel da magistratura brasileira, mesmo que uns não queiram, longe da neutralidade e imparcialidade diante das violações das garantias constitucionais, é de ser o garantidor do exercício da cidadania e, para tanto, precisa garantir o seu próprio direito de pensar e manifestar livremente seu pensamento, sob o risco de continuarmos sendo uma casa de ferreiros que usam espetos de pau, permitindo que o ferro continue sendo usado pelos algozes do povo e de nós mesmos.
[1] Pela “Lei Falcão”, os candidatos estavam proibidos de anunciar, em suas propagandas, outras informações além de breves dados sobre sua trajetória de vida, bem como veicular músicas com letra, discursos ou imagens. A única exceção era em relação à foto do candidato, que poderia ser exibida ne televisão, juntamente com seu respectivo nome, partido e a leitura de seu currículo.
[2] Recentemente, a Associação Juízes para a Democracia (AJD) divulgou nota em defesa da liberdade de expressão e manifestação do pensamento da magistratura. Confira: http://ajd.org.br/documentos_ver.php?idConteudo=164