Artigo – As fronteiras do racismo na realidade catarinense: reflexões sobre o Dia Nacional da Consciência Negra

Em 2024, pela primeira vez, o dia 20 de novembro será feriado em todo o país. A lei celebra o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra e foi sancionada pelo presidente Lula (PT) em dezembro de 2023. Anteriormente, a data era feriado em seis estados brasileiros e cerca de 1.200 cidades. O feriado remete ao dia da morte de Zumbi, assassinado em uma emboscada por ter liderado a resistência contra os ataques portugueses contra o Quilombo de Palmares no século 17. De acordo com registros históricos, Zumbi nasceu em 1644 onde hoje está localizado o estado de Alagoas. Palmares é considerado o maior Quilombo da América Latina. Cerca de 20 mil pessoas moravam e trabalhavam no local, em busca de refúgio contra a escravidão e outras perseguições.

Leia abaixo o artigo “As fronteiras do racismo na realidade catarinense: reflexões sobre o Dia Nacional da Consciência Negra”, escrito por Adailton Pires Costa [1] e Jeane Adre Rinque [2].

No dia 20 de novembro de 2024 o Brasil terá feito um acerto de contas com seu passado e passará a comemorar, pela primeira vez em âmbito nacional, o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Esse é um dia para resgatar a memória e valorizar a identidade e cultura africana e afro-brasileira, que tem no seu líder mais famoso – Zumbi dos Palmares – um símbolo de luta pela liberdade no Brasil. Mas este também é um dia para refletirmos sobre os casos de racismo que ainda persistem em nossa realidade brasileira e catarinense, que tem se intensificado com a chegada de imigrantes de outros países.

A imigração é um fenômeno mundial, e a América Latina tem se tornado um destino importante para refugiados e imigrantes de diferentes partes do mundo, especialmente haitianos e pessoas de Oriente Médio, que buscam refúgio de crises políticas, humanitárias e climáticas, além de conflitos armados em seus países de origem. No Brasil, estados como Santa Catarina têm se tornado lar para essas comunidades. Tal como Zumbi dos Palmares, descendente direto de africanos que viveram em diáspora no séc. XVII, esses imigrantes carregam a chama da resistência de povos que têm lutado por dignidade e liberdade em meio a oceanos e fronteiras que foram obrigados a atravessar. Abordar essa questão exige uma perspectiva crítica, decolonial e interseccional, pois revela as complexas dinâmicas de poder, raça, desigualdade e resistência que atravessam os fluxos migratórios no Sul Global.

Em primeiro lugar, é essencial reconhecer o legado colonial e a dependência econômica que caracterizam as relações entre o Norte e o Sul Global. Países como Haiti e Palestina têm historicamente enfrentado intervenções estrangeiras, exploração econômica e instabilidade causada, em grande parte, por essas dinâmicas de dependência à matriz capitalista, colonial/moderna e eurocentrada.

Essa mesma lógica colonial e racial se reflete nos países de acolhida, incluindo o Brasil, onde os imigrantes enfrentam discriminação, marginalização e desafios na integração. Em Santa Catarina, os imigrantes haitianos, por exemplo, são predominantemente negros e muitas vezes enfrentam racismo explícito e implícito (muitas vezes de grupos que um dia já foram imigrantes), além de dificuldades para acessar direitos trabalhistas e cidadania plena. Porém, o racismo não é uma questão que afeta apenas os povos africanos ou afrodescendentes em razão da herança nefasta da escravidão; o racismo é um processo de discriminação fundada em preconceitos de pretensa superioridade racial e cultural que tem afetado diversos povos ao longo da história e que pode se manifestar de diferentes formas. Em Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano, Grada Kilomba examina como o racismo é um sistema global que hierarquiza pessoas com base em suas origens e culturas, marginalizando-as e reforçando estereótipos. Ela também critica o processo de desumanização e estigmatização dos “outros” vistos como diferentes, o que também inclui comunidades fora da história direta da escravidão africana.

A determinação de quem é diferente é uma construção social. Quando essa diferenciação é pejorativa (baseada em preconceitos) e gera marginalização social configura-se a discriminação. E a discriminação fundada em um estereótipo racializado (forjado historicamente) pode resultar em racismo. Esse estereótipo naturaliza uma relação de causalidade (que é falsa) entre características fenotípicas ou genotípicas de indivíduos ou grupos e seus traços intelectuais, culturais e de personalidade. Logo, o racismo baseia-se numa invenção, numa ficção. Mas essa ficção sempre parte de um grupo que tem o poder de se definir como o “normal”, jogando todos os demais para a condição de “outros” hierarquizados como inferiores. Logo, o ato de preconceito isolado praticado por quem não tem poder social não resulta em racismo. Para haver racismo é necessário a combinação de discriminação por preconceito racial + exercício do poder de marginalização social. Em nosso tempo histórico, herdeiro do padrão de poder colonial/moderno, o ponto de referência da “normalidade” tem sido a branquitude, que tem o poder de classificar na exceção racializada de “não-branco” todos aqueles que não se encaixam em seus critérios, podendo abarcar nesse rótulo desde angolanos e haitianos até palestinos, nordestinos, chineses e guaranis. Portanto, a discriminação racial em nossa época é praticada contra o “outro” inventado pela branquitude e somente nesse sentido podemos falar em racismo.

Nesses termos, alguns grupos do Oriente Médio, por exemplo, carregam uma dimensão de luta contra o racismo colonial, e muitos deles emigram forçados pela discriminação e violência sofridas, buscando reconstruir suas vidas longe do contexto de dominação e preconceito. Mesmo assim, as raízes árabes e muçulmanas de muitos desses imigrantes frequentemente os tornam alvo de discriminações raciais e religiosas nos seus novos locais de moradia, o que reforça a sua marginalização e dificulta o pleno reconhecimento de suas contribuições culturais e econômicas para as sociedades anfitriãs.

Em Santa Catarina, especialmente em Florianópolis, tem ocorrido um aumento da migração de pessoas nos últimos anos, impulsionado por fatores econômicos, sociais, políticos, climáticos e de qualidade de vida. A diversidade de origens culturais dos migrantes têm mudado a realidade local. A presença de migrantes no Serviço Público Federal em Santa Catarina está dentro desse cenário. Nas últimas nomeações de servidores do TRT12, por exemplo, é perceptível essa migração de outros estados, inclusive das regiões Norte e Nordeste, que vem se intensificando principalmente após a pandemia do COVID-19, com a abertura da possibilidade do trabalho remoto. Entre os quase 46 servidores já nomeados do último concurso homologado em 2024, mais de 80% são de outros estados. E nessa interação, constata-se que fronteiras migratórias não são apenas espaços de chegada, mas cenários de disputa entre acolhimento e marginalização. Os fluxos migratórios internos também são produtos de ambientes adversos, excludentes, instáveis, fazendo-nos refletir sobre nossas práticas e sobre o racismo cotidiano presente nelas. Isso nos faz questionar: Como estamos recebendo nosso colega de trabalho ou o jurisdicionado migrante de outro estado? Como você reagiria se precisasse recomeçar em um outro lugar desconhecido? Para que possamos realmente avançar em um judiciário justo e sem racismo, tanto nas tarefas desempenhadas, quanto na nossa prática diária, é essencial que busquemos promover espaços de acolhimento e integração com empatia, compreensão e solidariedade, rompendo com a lógica da exploração e do racismo estrutural e cotidiano. 

Referências:

Kilomba, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano. Editora Madalena, 2019.

Quijano, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In.: Edgardo Lander (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. CLACSO, Argentina, 2005.

 

[1] Coordenador de Formação Sindical do SINTRAJUSC. Analista Judiciário do TRT12. Doutor em Direito pelo PPGD/UFSC. Mestre em História do Direito pela UFSC. Graduado em História pela UDESC. Professor de História na rede pública do Estado de Santa Catarina.

[2] Administradora SINTRAJUSC. Mestranda em Filosofia no Programa de Pós Graduação da Universidade do Rio de Janeiro/PPGF UFRJ.