Sob o sol, o vento e a poeira fortes, o presidente da Bolívia, Evo Morales, falou nesta segunda-feira (8) para uma platéia de pouco mais de mil pessoas, ao lado do local onde foram encontrados os restos mortais de Che Guevara, em Vallegrande, sudeste da Bolívia. Um discurso marcadamente ambientalista deu o tom da fala do presidente boliviano, precedido por saudações de ex-guerrilheiros, intelectuais e representantes de Cuba e Venezuela que exaltaram o socialismo do século XXI.
“A América Latina deve viver com dignidade e liberdade. Não podemos mais ser o pátio dos fundos do imperialismo norte-americano”, disse Evo, que teve nos Estados Unidos um dos focos principais de sua fala. “A luta heróica de Che e de outros revolucionários continuará até acabarmos com o capitalismo. Esta é a luta dos povos”, afirmou.
O presidente boliviano defendeu a nacionalização dos recursos naturais, que tem garantido um aumento considerável no orçamento do país e nas reservas internacionais. “Antes, para onde ia este dinheiro?”, indagou. Morales também defendeu a continuidade dos trabalhos da Assembléia Constituinte, como forma de avançar com as transformações no país. Uma das propostas é proibir a instalação de bases militares dos Estados Unidos na Bolívia.
Evo Morales voltou a fazer críticas à produção de biocombustíveis no continente, no momento em que fez uma referência direta ao Brasil, pedindo desculpas aos brasileiros presentes. “Trata-se de uma política totalmente equivocada. Os alimentos não podem ser para os carros norte-americanos”, falou. O presidente também afirmou que a América Latina pode se tornar a “esperança da humanidade”, se conseguir defender seus recursos naturais, falando especialmente da energia, da água e da terra. “Temos que lutar por uma nova forma de vida, para não transformar nosso continente em lixo. A América Latina é a esperança para os povos da Terra. Se cuidarmos bem dos nossos recursos naturais, seremos a esperança para a humanidade”, disse.
Entre os brasileiros, estavam presentes o deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) e o dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra José Damasceno, que fez a entrega de um boné do MST e de uma bandeira da Via Campesina. Evo Morales mencionou críticas que recebera por conta de sua presença nos atos em homenagem a Che Guevara: “Não temos por que ocultar: somos humanistas, somos revolucionários. A luta antiimperialista também é um compromisso da presidência”.
Disputa aberta
As localidades de Vallegrande e La Higuera, pertencentes ao departamento de Santa Cruz de la Sierra, parecem ter se transformado num palco de disputa simbólica entre os movimentos sociais e o governo boliviano, de um lado, e a direita do país, de outro. A população local, beneficiada por uma reforma agrária realizada há mais de 50 anos e muito religiosa, é conservadora, a despeito da pobreza que grassa na região. Soma-se a isso a propaganda ideológica proporcionada pelos meios de comunicação de Santa Cruz, a cidade mais rica da Bolívia, onde a elite local se “organiza e se recicla”, nas palavras de Osvaldo Chato Peredo, presidente da Fundação Che Guevara.
“Não se trata de uma luta regional. Coincide com o fato de que Santa Cruz aglutina a direita boliviana. São interesses econômicos muito grandes, que não são simplesmente regionais”, explica Chato. “A Bolívia esta dividida num mapa horizontal, entre os de cima, que sempre estiveram no poder, e os de baixo, que agora emergem”, completa.
Desde o início do evento, os organizadores reclamam da pouca ajuda ofertada pelo prefeito de Vallegrande, que integra o partido Ação Democrática Nacional. Até mesmo os rumores de que grupos direitistas haviam tomado La Higuera eram boatos, possivelmente produzidos por setores da direita de Santa Cruz. Nas ruas, uma parte considerável da população local repete o discurso reacionário, de que preferem homenagear os soldados do exército oficial, que lutaram pelo país, a exaltar os “cubanos” que mataram os bolivianos na época.
Em contrapartida, Vallegrande, com a “sorte” de suas terras terem servido de túmulo para Che por mais de 30 anos, agora recebe obras do governo boliviano, com ajuda das embaixadas de Cuba e Venezuela. São reformas no hospital e melhorias no transporte, uma forte presença de médicos cubanos e a implementação dos programas de alfabetização baseados no método “Sim, eu posso”. O embaixador de Cuba na Bolívia, Rafael Céspedes, lembra que a solidariedade entre os dois países é incondicional, sem contrapartidas. “É uma integração que faz parte do sonho do Che”, diz.
Para o deputado federal Ivan Valente, há um conflito instalado no país. “As realizações do novo governo são bastante positivas no campo da saúde, da educação. Foi um choque para a elite boliviana. É um processo traumático, uma elite de 500 anos. E a região mais rica da Bolívia está produzindo uma ideologia conservadora, antiintegração da AL”.
Em 2008, 80 anos
No ano que vem, no dia 14 de junho, Ernesto Che Guevara completaria 80 anos. Os representantes da Fundação Che Guevara afirmam que, possivelmente, ocorrerá um grande ato em Rosário, na Argentina, local de nascimento de Che.
Nesta segunda, uma caravana de táxis, ônibus e pessoas em carona percorreu as duas horas de estrada, à beira de despenhadeiros, até chegar em La Higuera. Um ato político foi realizado a partir da meia-noite, seguido de uma vigília na escolinha legal, onde Che foi fuzilado. Nesta terça (9), no dia dos quarenta anos da morte de Guevara, será realizado uma mística de encerramento, comandada pela Via Campesina Internacional. A atividade terá as presenças de João Pedro Stedile (MST), Dom Tomas Balduino (CPT), do ex-senador João Capiberibe e do ator Chico Diaz, entre outras personalidades brasileiras.
Fonte: Agência Carta Maior (Daniel Cassol)