Estados Unidos – Diário Liberdade – 9 de junho de 2013. Glenn Greenwald, em Hong Kong, entrevista Edward Snowden, o 'vazador' de segredos da Agência de Segurança Nacional EUA
Edward Snowden: Meu nome é Ed Snowden, 29 anos. Trabalhei para a empresa Booz Allen Hamilton como analista de infraestrutura para a Agência Nacional de Segurança dos EUA no Hawaii.
Glenn Greenwald: Antes disso, que outras posições você teve, na comunidade de inteligência?
Snowden: Fui engenheiro de sistemas, administrador de sistemas, conselheiro sênior para a Agência Central de Inteligência, consultor de soluções e encarregado de sistemas de telecomunicações.
Greenwald: Um das coisas que as pessoas mais querem entender é quem é você, o que pensa e porque, num certo momento, você decidiu expor esses materiais e converteu-se em 'vazador'. Explique às pessoas esse processo, até tomar a decisão.
Snowden: Quando você está em posição em que tem acesso privilegiado, como administrador de sistemas, por exemplo, para todos os tipos de agências da comunidade de inteligência, você é exposto a uma quantidade muito maior de informações, em escala muito maior do que o empregado médio. Todos assistem a coisas que podem ser muito perturbadoras, mas, na carreira de uma pessoa comum, os eventos mais perturbadores aparecem uma, duas vezes. E quando você vê o que vê em base mais frequente, você entende que muitas daquelas coisas são realmente abuso. Se você fala sobre aquilo com as pessoas daquele mesmo meio, onde aquele é o estado normal das coisas, as pessoas tendem a não dar muita atenção e a não tratar como coisa séria; ouvem e mudam de assunto.
Com o tempo, é como se a certeza de que aquilo não pode ser feito, que é errado, que é crime, vai crescendo. Você começa a ter de falar sobre aquilo tudo. E quanto mais você fala, menos atenção lhe dão. Quanto mais você ouve que aquilo não é problema, mais a coisa lhe parece errada, até que você afinal percebe que aquelas coisas têm de ser decididas pelo público, não por alguém que foi simplesmente contratado para trabalhar para o governo.
Greenwald: Fale um pouco sobre como realmente funciona o estado de vigilância norte-americano. Também espionam norte-americanos?
Snowden: A Agência de Segurança Nacional e a comunidade de inteligência em geral está focada em obter inteligência em todos os lugares, por todos os meios possíveis. Eles acreditam, baseados em todos os tipos de autocertificação, que servem ao interesse nacional. Originalmente, viu-se aquele foco muito estreitamente modelado para obter inteligência estrangeira.
Atualmente, cada vez mais estão trabalhando domesticamente. Para fazer isso, a Agência de Segurança Nacional toma por alvo, especificamente, as comunicações de todos. Recolhe tudo, como procedimento padrão. Recolhe as informações em seu sistema, depois filtra as informações e passa a analisar e avalia e armazena por períodos de tempo, simplesmente porque é esse é o meio mais fácil, mais eficiente e mais rendoso de atingir aqueles objetivos. Assim, podem estar interessados em alguém associado a algum governo estrangeiro ou alguém que eles suspeitem que seja terrorista, e coletam as comunicações de todos, para fazer aquele serviço.
Qualquer analista, a qualquer hora, pode tomar qualquer pessoa como alvo, qualquer seletor, em qualquer lugar. O local onde as comunicações serão recolhidas depende do alcance do sensor de redes e da autoridade que cada analista tenha. Nem todos os analistas têm meios para atacar qualquer pessoa. Mas eu, sentado na minha mesa, tinha, com certeza, autoridade para gravar qualquer um: você, o seu contador, um juiz federal e até o presidente, se eu tivesse um endereço de e-mail pessoal.
Greenwald: Um dos detalhes extraordinários desse episódio é que, de modo geral, os vazadores fazem anonimamente o que fazem, e cuidam para preservar o próprio anonimato pelo maior tempo possível, quase sempre esperando conseguir manter-se oculto para sempre. Mas você decidiu fazer diferente: declarou que é você que está por trás dessas revelações. Por que você decidiu agir assim?
Snowden: Acho que o público tem direito a uma explicação sobre as motivações que há por trás das pessoas que invadem a privacidade dos outros, uma invasão que não corresponde ao modelo democrático. O que eu vi acontecer é o governo subvertendo o poder do governo, que é coisa perigosa para a democracia, e em absoluto segredo, com o governo se beneficiando das próprias ações secretas. É como se aqueles agentes tivessem um mandato para prosseguir: “Digam isso e isso à imprensa, e mais isso… E assim o público ficará do nosso lado.” Mas só raramente, na prática, pode-se dizer, nunca, fazem isso, quando acontecem os abusos. Acaba recaindo sobre cidadãos individuais, que são demonizados sempre. Vira uma coisa de “esse pessoal está contra o país. Estão contra o governo. Mas eu não.”
Não sou diferente de ninguém. Não tenho capacidades especiais. Sou só mais um sujeito que senta todos os dias no escritório, vê o que está acontecendo e, um dia, pensa “Mas não me cabe decidir sobre essas coisas, não cabe a ninguém, aqui, decidir sobre essas coisas… Quem tem de decidir sobre isso é o público, se esses programas e essas políticas são certas ou erradas.” Quero que saibam que eu não alterei nada, não modifiquei a história. Essa é a verdade. O que está acontecendo é exatamente isso. Vocês decidam se temos de continuar a fazer isso.
Greenwald: Você pensou sobre qual será a resposta do governo dos EUA ao que você fez? O que vão dizer de você, que vão tentar desmoralizá-lo completamente, tudo que podem tentar fazer a você?
Snowden: Sim, posso ser sequestrado pela CIA. Vão me procurar. Ou qualquer outro dos envolvidos. Eles trabalham em íntima colaboração com vários outros países. E podem contratar gente de grupos clandestinos.[1] Qualquer dos seus muitos agentes e contratados. Há uma célula da CIA bem aqui na esquina, e o consulado dos EUA aqui em Hong Kong. Com certeza, vão estar muito ocupados na semana que vem. Esse é um medo que terei de carregar durante o resto da minha vida, dure quanto tempo durar.
Ninguém pode levantar-se contra as agências de inteligência mais poderosas do mundo e supor que não haverá riscos, porque são muito poderosos. Na verdade, ninguém pode levantar-se contra eles. Se quiserem acabar com você, conseguirão encontrá-lo. Mas, ao mesmo tempo, você tem de decidir o que realmente é importante para você. Se você estiver disposto ou interessado em viver sem liberdade alguma, mas confortavelmente, se você estiver interessado em aceitar isso… E há muitos que aceitam, é da natureza humana. É possível levantar todos os dias, ir trabalhar, receber o pagamento, aquele monte de dinheiro em troca de relativamente pouco trabalho e contra o interesse público, depois voltar para casa e dormir à noite, depois de assistir aos seus programas preferidos de TV.
Mas se você dá-se conta de que você ajudou a criar esse mundo, e que as coisas serão ainda muito piores para a próxima geração, e a outra, e a outra… Porque você ajudou a ampliar as capacidades desse tipo de arquitetura da opressão. Então você começa a ver que você está disposto a aceitar qualquer risco e que não importa o resultado, desde que o público consiga começar a tomar as próprias decisões sobre como fazer as coisas.
Greenwald: Por que as pessoas devem preocupar-se com estar sob vigilância, com estarem sendo vigiadas?
Snowden: Porque mesmo que você não esteja fazendo nada errado, mesmo assim você está sendo vigiado e gravado. E a capacidade de armazenamento desses sistemas cresce ano a ano, e cresce muito, em tal ordem de magnitude, que já estamos chegando ao ponto em que gravam tudo também de quem não esteja fazendo nada errado. Basta que surja alguma suspeita. Algum suspeito erra um número e o telefonema acabe chegando ao seu telefone. A partir daí, eles podem usar esse sistema e voltar no passado, para examinar cada passo que vc tenha dado, cada decisão que tomou, cada amigo com quem conversou. E podem atacar você, lançando suspeitas sobre qualquer um, sobre qualquer vida, por mais inocente que seja. E podem pintar qualquer um, como se fosse bandido.
Greenwald: Estamos sentados numa sala em Hong Kong, porque você optou por vir para cá. Fale um pouco sobre por que escolheu essa cidade. Já há quem esteja dizendo que vc escolheu buscar proteção num país que, para muitos, é o rival número 1 dos EUA: a China. E que você estaria, essencialmente, procurando ajudar um inimigo dos EUA, ao qual planeja pedir asilo. Você pode falar um pouco sobre isso?
Snowden: Claro que sim. Há algumas coisas a dizer, que, em certo sentido, estão incorporadas na ideia de quem questione eu ter escolhido Hong Kong. A primeira delas é que a China seria inimiga dos EUA. A China não é inimiga dos EUA. Há conflitos entre o governo dos EUA e o governo da República Popular chinesa, mas as pessoas, os cidadãos, nós, de fato, pouco nos incomodamos com aqueles conflitos. Os dois países comerciam livremente, não estamos em guerra, não há qualquer conflito armado, nenhum dos lados tem qualquer interesse em qualquer conflito armado. Os dois países são os principais parceiros comerciais, um do outro. A China não é nação inimiga dos EUA.
Além disso, Hong Kong tem forte tradição de liberdade de manifestação. As pessoas pensam 'Oh, a China, a Grande Muralha Firewall'. A China continental mantém restrições significativas à liberdade de expressão dos cidadãos, mas o povo de Hong Kong tem longa tradição de protestar nas ruas, de fazer ouvir suas posições. A internet não é mais filtrada aqui que em qualquer país ocidental, e acredito que o governo de Hong Kong é realmente independente, em relação a muitos dos principais governos ocidentais.
Greenwald: Se sua motivação fosse causar dano aos EUA e ajudar os inimigos dos EUA, ou se seu motivo fosse alguma ambição pessoal, de ganhar muito dinheiro, você sabe que poderia ter dado outro destino às mesmas informações e documentos?
Snowden: Ah, sei, sim, com certeza! Qualquer pessoa, na posição em que eu trabalhava, com acesso e com as capacidades técnicas que eu tinha, poderia facilmente contrabandear informação, passar informações adiante, vendê-las no mercado livre russo. Sempre há interessados. Eles (e nós) mantemos sempre uma porta aberta para esses contatos. Nunca parou de haver interessados. E eu tinha acesso total às relações de todos os agentes que trabalham na Agência Nacional de Segurança, de toda a comunidade de inteligência dos EUA, de agentes infiltrados em todo o planeta. A localização de cada unidade, a missão de cada uma, e muito mais. Tinha acesso total a todas essas informações.
Se eu quisesse causar dano aos EUA?! Eu podia derrubar todo o sistema de vigilância em algumas horas, numa tarde. Mas isso não me interessava. Acho que todos os que criticam o que eu fiz devem pensar no que fariam se estivessem na posição em que eu estava. Se vivessem via boa, no Havaí, no paraíso, ganhando muito, muito dinheiro. Qual seria o limite de cada um? O que teria de acontecer, para que cada um decidisse deixar para trás tudo aquilo?
Meu maior medo, em relação a tudo isso e ao resultado que possa advir para os EUA, depois das revelações que fiz, é que nada mude… As pessoas lerão nos jornais sobre o que distribuí. E poderão ver até que ponto o Estado chegam, para assegurar poderes excepcionais só para eles mesmos, poderes unilaterais, para criar controle cada vez maior sobre a sociedade norte-americana e a sociedade global. OK… Mas pouca gente estará disposta a assumir os riscos necessários para mudar, realmente, tudo isso. Para obrigar os políticos eleitos a assumir a defesa, real, do interesse dos cidadãos eleitores.
E nos próximos meses e anos, as coisas só tendem a piorar, até que, um dia, as políticas comecem a mudar. Porque só a política tem capacidade para controlar as atividades e os poderes de vigilância do Estado. Até em nossos acordos com outros estados soberanos, entendemos que seja determinação política, não determinação por lei. Até lá, continuarão a ser eleitos líderes que dizem “A crise é grave, enfrentamos perigos terríveis em todo o mundo, surgiu uma nova e imprevisível ameaça e, por isso, precisamos de mais autoridade, de mais poder”. E não haverá coisa alguma que o povo possa fazer, depois que chegarmos àquele ponto, para opor-se a eles. Será tirania de porteira-fechada (orig. turnkey tyranny).
Tradução do coletivo Vila Vudu