No dia 26 de abril fez um ano do resultado final do julgamento de uma ADIN (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 186/2009) proposta pelo DEM. Trocando em miúdos, o ponto culminante desta ação judicial foi contestar o critério racial adotado pela UnB (mas que deitaria luzes sobre as demais universidades públicas brasileiras) quando do ingresso de estudantes em seu corpo discente.
Naquela oportunidade, o placar unânime de votos declarando o sistema de cotas raciais como constitucional ecoou tal qual um grito de protesto. O placar de 10 x 0 ecoou tal qual uma denuncia da gravidade, da terrível gravidade da desigualdade racial em favor de brancos em nosso pais (Tóffoli não votou, por se declarar impedido. Quando AGU deu parecer favorável às cotas raciais). Um detalhe a mais neste grande julgamento diz respeito da participação de ministros e ministras nomeados por todos os presidentes pós Constituição Federal de 1988. Não foram apenas votos de ministros de apenas um nomeante, mas de todos (Sarney, Collor, FHC, Lula e Dilma).
Para que fosse alcançada tal unanimidade na esfera máxima do judiciário brasileiro, foi preciso além dos embates argumentativos sobre desigualdade racial a atravessar nossa história, também um árduo percurso em tribunais estaduais e federais de instâncias inferiores, mais particularmente no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e nos tribunais regionais federais das 1ª, 4ª e 5ª regiões, tribunais esses onde os questionamentos sociais e jurídicos afloraram de ambas as partes, contra e a favor em relação ao sistema de inclusão pelo critério racial. No Rio de Janeiro (UERJ) a existência se dá por intermédio de lei iniciada pelo executivo e nos estados (universidades federais) cobertos pela competência dos tribunais regionais federais através de autonomia universitária.
Seria desnecessário trazer à atenção do caro leitor a repetição de teses e dissertações prós e contras as cotas raciais. Isso pode ser encontrado a exaustão em artigos e trabalhos em diversos meios midiáticos. O que pretendo neste artigo é demonstrar um resumo do pensamento posto no papel dos primeiros magistrados de tribunais que enfrentaram o tema e se posicionaram a favor do sistema pelo recorte racial, demonstrando assim uma sensibilidade apreendida a partir da realidade vista e ouvida por seus próprios olhos e ouvidos. E somada, tal realidade, aos números estatísticos trazidos por confiáveis institutos de pesquisa.
Adentrando nos tribunais acima indicados, destaco decisões originais a favor das cotas raciais e seus respectivos responsáveis pela subscrição das mesmas, as quais serviram como jurisprudência (julgados anteriores) para decisões futuras. Com base nesse ponto, advêm três tipos de julgados em prol do sistema, os que inauguram e são a favor, não se baseando, por inexistir, em jurisprudência, os que concordam trazendo julgados anteriores (jurisprudência) e os que expõem uma divergência, mas se adéquam a maioria formada no âmbito do tribunal em que militam. Existe ainda um quarto tipo de decisório, quando mesmo considerada inconstitucional pelo magistrado, de tal decisão não se aproveita o requerente. Exemplificado este último caso, considerada como válida lista única e universal o requerente ficaria fora das vagas ofertadas pelo curso. Apenas ingressou na justiça por ter tido nota superior a um cotista matriculado.
Tais ações contra o sistema de cotas foram iniciadas ou por candidatos que se sentiram injustiçados, ou pelo representante do MPF (uma corrente que via com outros olhos o princípio da igualdade) ou por algum sindicato de estabelecimentos de ensino privado. Tais ações tinham como partes contrárias as universidades públicas e nasceram de provocação a magistrados de 1ª instância, os quais muitos desses já demonstraram preocupação replicada quando da análise pela corrente majoritária nos tribunais, corrente essa favorável às Ações Afirmativas pelo critério racial.
Colaciono trechos de quatro decisões para demonstrar como foi construído todo um arcabouço a balizar as razões de o porquê não teria como ter votos contrários quando do julgamento da ADIN nº 186. A saber:
“Em verdade esse discurso (em prol da igualdade formal em desfavor da igualdade material) constitui um retrocesso na luta pelas igualdades sociais, pois àqueles que durante séculos deixaram de receber tratamento igualitário agora se quer negar justa proporção de desigualdade que lhes permita ombrear-se aos que eram desiguais, para, nessa igualdade forçada, projetar igualdade de condições para futuras gerações, quando, então deverão cessar as ações afirmativas pela equiparação das virtualidades de todo (…)” Rio de Janeiro-RJ, 05 de agosto de 2003, Des. Edson Vasconcelos. Agravo de Instrumento nº 2003.002.05345. TJ-RJ.
“(…) constata-se que a orientação mais atual da doutrina inclina-se pela adoção de medidas efetivas para a remoção de diferenças seculares estabelecidas em relação às oportunidade oferecidas aos brasileiros como forma de erradicação da histórica diferenciação entre raças e classes sociais. (…) No caso, ao promover a desigualdade, está cumprindo o mandamento constitucional da igualdade, pois somente é possível admitir que todos são iguais quando as circunstâncias sociais, étnicas, econômicas ou de orientação não constituem impedimento ao desenvolvimento e aprendizado geradores de conhecimento e progresso individual e coletivo” Brasília-DF, 15 de fevereiro de 2004, Desª. Federal Selene Maria de Almeida. Apelação em Mandado de Segurança nº 2006.33.00.002978-0/BA. TRF1ªRegião.
“É simplismo alegar, em relação ao tema sub examine, que a Constituição proíbe discrimen fundado em raça ou em cor. O que, a partir da declaração dos direitos humanos, buscou-se proibir foi a intolerância em relação às diferenças, o tratamento desfavorável a determinadas raças, a sonegação de oportunidades a determinadas etnias. Basta olhar em volta para perceber que o negro no Brasil não desfruta de igualdade no que tange ao desenvolvimento de suas potencialidades e ao preenchimento dos espaços de poder. É simplismo argumentar que a discriminação existente é em razão dos estamentos sociais; muito embora o branco pobre padeça também de carência de chances, fato irrecusável é que à figura do negro associou-se, imbricou-se mesmo, uma conotação de pobreza que a disparidade acaba por encontrar dupla motivação: por ser pobre ou por ser negro, presumidamente pobre. Não se trata aqui de reparar no presente uma injustiça passada; não se trata de vindita ou compensação pelas agruras da escravidão; a injustiça aí está, presente: as universidades, formadoras das elites, habitadas por esmagadora maioria branca. Permissa maxima venia, não há como deixar de dizê-lo, ver a disparidade atual e aceitá-la comodamente é uma atitude racista em sua raiz. Simplismo, também, dizer que as cotas nas universidades não são o remédio adequado, que o tratamento a ser dispensado ao problema está em propiciar-se um ensino básico democratizado e de qualidade. É claro que as cotas raciais não constituem a única providência necessária, não se há de erigi-la em solução. Não as vejo, todavia, como mero paliativo, pois creio que uma elite nova, equilibrada em diversificação racial, contribuirá em muito para a construção da sociedade pluralista e democrática que o Brasil requer.” Porto Alegre-RS, 31 de março de 2005, Des. Federal Luiz Carlos de Castro Lugon. Agravo de Instrumento nº 2005.04.01.006358/PR. TRF4ªRegião.
“No caso trazido à baila, vislumbra-se que a criação de cotas raciais para entrada de negros e pardos nas Universidades, revela-se em mais uma tentativa de solução ou, ao menos, de minimização de um problema social. Decerto, dentro da perspectiva sócio-econômica brasileira são os negros os que mais vivenciam a exclusão social, sofrendo com o preconceito e a falta de oportunidades. Daí não terem acesso ao ensino fundamental de qualidade o que dificulta ou até inviabiliza o ingresso na vida universitária. É tratar os desiguais na medida de sua desigualdade o que, ao contrário do alegado pelo agravante, coaduna-se plenamente com o próprio princípio da isonomia.” Recife-PE, 03 de outubro de 2006, Des. Federal Petrucio Ferreira. Agravo de Instrumento nº 2005.05.00.012442-4 contra decisão emanada os autos de Ação Ordinária nº 2005.80.00002218-7/AL. TRF5ªRegião.
Tais trechos acima, extraídos de algumas das primeiras decisões aglutinaram as vozes seculares de quem não tem oportunidade de se expressar para a sociedade, através da mídia, por seus diversos canais. Os canais midiáticos detentores de um pensamento único, arcaico e excludente sempre se mostraram avessos a ceder seus espaços para a voz do povo preto. A militância negra deste país nunca desistiu e a pressão apenas aumentava a cada dia. Suas vozes enfim eram postas no papel pelos magistrados, pela caneta dos magistrados. O grito positivado, o protesto de milhões de pretos ou mestiços gritando:
“Liberdade, Emancipação, Oportunidade – conceda-nos, oh Mundo orgulhoso, as oportunidades de homens vivos!” In As Almas do Povo Preto, W. E. B Du Bois, 1903. fls. 145.
O caro leitor deve perguntar se não emergiram decisões contrárias no âmbito daqueles tribunais. Sim, porém a história caminhava numa única direção e não tinha retorno. Verdadeiros tratados eram lançados a tentar convencer ser um equívoco evocar o discriminem fundado em cor. A corrente majoritária vencia tais tratadistas demonstrado que o discriminem fundado em cor como discriminação positiva não feria a Constituição Federal. A realidade nua e crua de nossa sociedade era o principal avalista da corrente vitoriosa.
Portanto, o dia 26 de abril de 2013 foi um dia para lembrar não apenas o que ocorreu um ano antes, mas também serve para lembrar como a luta foi árdua e custosa. Uma luta centenária em busca da igualdade material para todos os brasileiros. Uma luta que não cessa com aqueles 10 x 0. Tal unanimidade é uma arma a mais na busca de uma sociedade livre, justa e solidária. Uma sociedade que no dizer do professor Hélio Santos só alcançará o progresso quando pretos estiverem dignamente representados nos vários campos de nossa sociedade. É o nosso desejo.
Por Francisco Antero Mendes Andrade.