O Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) devem ampliar em 2012 a discussão sobre os limites de cada Poder e até onde cada um deve interferir sobre a atuação de outro. Isso virá à tona não só no debate sobre os poderes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em que parte do Judiciário deseja impor limites ao órgão enquanto o Legislativo é amplamente favorável à sua liberdade de atuação. Também serão expostas as divergências quanto à falta de cumprimento pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal das determinações feitas pelo Supremo para que aprovem determinadas leis de sua exclusiva competência.
Ministros do STF estudam aprofundar os mecanismos de controle de suas decisões para evitar que o Congresso protele determinações da Corte. “Hoje, é preciso dar mais eficácia à decisão que se toma”, afirmou ao Valor o ministro Gilmar Mendes. “Temos que assentar questões quanto à súmula vinculante e às reclamações”, completou, referindo-se a dois mecanismos que fazem com que as decisões do STF sejam cumpridas por todos os tribunais do país.
Entre as decisões que ainda não foram cumpridas está a forma de divisão de mais de R$ 40 bilhões entre os Estados. Essa verba é transferida da União por meio do Fundo de Participação dos Estados (FPE). Mas, o STF decidiu que os critérios de repartição do fundo, que são dos anos 1980, estão desatualizados e, se o Congresso não aprovar novas regras até 31 de dezembro de 2012, será extinto. A decisão do Supremo sobre o FPE foi tomada em fevereiro de 2010 e, até agora, o Congresso não iniciou um debate sobre as novas normas do fundo.
No caso da legislação de greve para o setor público, o atraso é ainda maior. A decisão do Supremo que mandou o funcionalismo seguir a Lei de Greve do Setor Privado é de 2007. Ela foi tomada em meio ao caos aéreo daquele ano e às constantes paralisações dos controladores de voo. Passados mais de quatro anos, o Congresso ainda não aprovou regras para as paralisações do funcionalismo. Há dois projetos de lei em discussão inicial na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.
Gilmar Mendes lembrou que as primeiras decisões do STF alertando o Congresso para a necessidade de aprovar uma Lei de Greve para o funcionalismo foram proferidas ainda nos anos 1980. “No mandado de injunção sobre direito de greve, o tribunal rememorou que as primeiras decisões sobre o assunto eram de 1989”, disse. Ou seja, o atraso legislativo, após os alertas do STF, é de mais de 20 anos.
No Congresso, a avaliação é diferente. Não há a interpretação de que a Casa, nesses e em outros casos, atrasa ou desobedece o Judiciário. “O STF pode, no máximo, fazer uma sugestão. Até porque a não deliberação pelo Legislativo é uma decisão da Casa. É consequência de uma correlação de forças por parte de quem tem poder para decidir porque foi eleito para isso”, afirmou o deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), que foi presidente da Câmara dos Deputados no biênio 2007-2008.
Ele avaliou ser natural que o STF se sinta mais desembaraçado para tomar algumas decisões polêmicas porque o Congresso “depende do voto, é resultado da representação e da vontade popular”. Para ele, o fundamental é sempre buscar o entendimento com as cúpulas dos dois Poderes antes de se partir para críticas ou ataques públicos, por exemplo, pela imprensa. “É isso que leva ao enfrentamento. O que não é um mal em si, mas são escolhas. Eu preferiria, se necessário fosse, mas nunca foi, fazer um registro pessoal ou por escrito”, disse Chinaglia.
Um exemplo bem sucedido de entendimento ocorreu neste ano, quando o Congresso aprovou a Lei do Aviso Prévio proporcional poucos meses depois de o Supremo decidir que os trabalhadores mereciam ter prazo superior a 30 dias para o benefício. Em junho, os ministros começaram a discutir critérios para aumentar esse prazo, que sempre foi utilizado pelas empresas a despeito de a Constituição de 1988 dizer que 30 dias é o mínimo. Em outubro, o Congresso aprovou a Lei nº 12.506, que concedeu o máximo de 90 dias de aviso prévio. “Esse caso foi importante porque os parlamentares assumiram questões que o tribunal teria imensa dificuldade para decidir”, reconheceu Gilmar Mendes.
Foi em 2011, também, que os parlamentares começaram a debater com mais força meios para restringir os poderes do Supremo. A Comissão de Constituição e Justiça, por exemplo, promoveu o seminário “Separação de Poderes e Segurança Jurídica” para, oficialmente, debater “os limites de competência entre o Legislativo e o Judiciário”. Transformou-se, contudo, no palanque para ataques ao ativismo judicial e à chamada “judicialização da política”.
O autor do pedido do seminário, Nazareno Fonteles (PT-PI), é o deputado que tem tomado a frente dessas discussões na Casa. São dele as propostas de emenda constitucional que pretendem restringir a atuação do STF ou, em suas palavras, “impedir a grosseira tomada de prerrogativas do Congresso pelo STF”.
A sua Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 33 reúne no mesmo texto três alterações substanciais no funcionamento da Corte. Primeiro, somente pelo voto de quatro quintos dos integrantes de qualquer tribunal poderá ser declarada a inconstitucionalidade de lei ou do ato normativo do poder público. Segundo, passaria o Congresso a ter prazo de 90 dias, para deliberar, em sessão conjunta, por maioria absoluta, sobre o efeito vinculante das súmulas publicadas pelo STF. E, em terceiro, as decisões em ações diretas de inconstitucionalidade sobre emendas aprovadas pelo Congresso seriam submetidas à validação pelos parlamentares. O deputado resume as suas propostas na seguinte frase: “O Judiciário não tem esse poder todo. Eles que acabam extrapolando suas funções.”
Para Gilmar Mendes, o STF não está sendo ativista ao decidir a respeito de temas que o Congresso se omite e demora a legislar. “A expressão ativismo traduz uma exorbitância. Mas, nós temos que tratar de direitos sociais tão amplos. Então, como dizer que exorbitamos?”
O tribunal já modificou a legislação que trata de pesquisas com células-tronco e regras para a demarcação de terras indígenas. Em ambos os casos, foi utilizada a técnica de proferir uma sentença aditiva – uma decisão que vem com um anexo descrevendo como a lei deve ser cumprida. “Claro que se o Congresso tivesse atendido aos reclames não seria necessária a sentença aditiva”, disse Mendes.
Outro tema que preocupa os ministros do STF é a guerra fiscal. O tribunal já decidiu dezenas de vezes que um Estado não pode aprovar incentivos para atrair investimentos que prejudiquem outros. Mesmo assim, Estados continuam concedendo benefícios fiscais em descumprimento ao STF. No limite, o tribunal pode, na falta de uma legislação mais clara contra a guerra fiscal, impor uma orientação geral pondo fim aos incentivos dos Estados. “Daqui a pouco o tribunal vai acabar editando uma solução, pois há falta de política regional negociada”, advertiu Gilmar Mendes.
Atualmente, há 35 ações no STF envolvendo incentivos concedidos por Estados em detrimentos de outros. Ao todo, 17 Estados são, ao mesmo tempo, autores e réus nessas ações.