Fugindo das habitualidades as quais estamos acostumados a enxegar as relações de trabalho e o poder exercido, o filósofo francês Michel Foucault nos leva a pensar o poder exercido e suas corelações na sociedade de forma muito mais abrangente.
Foucault nos diz o seguinte: se não formos capazes de mostrar que é possível mudar a nós mesmos em primeiro lugar, se não conseguirmos mudar o exercício de poder em que estamos pessoalmente envolvidos, como podemos pretender que os outros venham a mudar a situação em que vivemos? Como pensar em melhoria ética sem ter em conta a relação que mantenho com meus colegas no local de trabalho, local em que muitos de nós passamos a maior parte do nosso tempo?
Observe que o que está em jogo não é, portanto, o poder político, nem o econômico, nem o jurídico, nem o ideológico, nem sequer a dominação étnica, mas o poder em geral, que tem um jeito de ser exercido igual em qualquer experiência de nossa vida cotidiana; o que ocorre entre governantes e governados é baseado na mesma lógica do que ocorre entre ricos e pobres, entre chefe e subalterno, e entre cada pessoa e seu colega de trabalho ou profissão, entre cada marido e cada esposa, entre namorado e namorada, entre colegas de aula, ou entre professor e aluno.
É este poder que precisamos entender e questionar, o jeito de ele funcionar na prática. Sem que entendamos isso, não será possível saber o que acontece conosco, e menos ainda será possível mudar algo.
O poder é, pois, uma ação de uma pessoa sobre a conduta de outra pessoa. Não sobre a pessoa, mas sobre a conduta da mesma. E só existe poder quando quem manda deixa ao outro a possibilidade de dizer sim ou não. Esse é o significado da afirmação de Foucault, de que só existe poder entre pessoas livres. Tanto somos livres quando mandamos, contanto que não imponhamos a obediência ao outro simplesmente pela força, quanto somos livres quando obedecemos ou desobedecemos a quem manda. Assim, só temos poder quando possibilitamos a resistência, ou seja, se quem manda não permite que o outro não obedeça, já não existirá poder e sim haverá violência. Por isso, poder não é violência. Logo, podemos afirmar que só há poder onde há relações de poder em ato; além disso, praticamente, só há seres livres onde há relações de poder.
O poder, como tal, não é bom nem mau, mas é algo que simplesmente existe. E existe em todas as relações entre pessoas livres. Há, portanto, em toda atividade considerada moral. E somos mais ou menos livres, porém livres sempre.
Quando aceitamos na teoria e na prática que o poder acontece entre pessoas livres, em que um quer dirigir a conduta de outrem, e em que sempre é possível a resistência, a desobediência, deixaremos de dizer que todos os males se devem aos outros e não também a quem obedece.
E deixaremos de dizer que uns são só bons e outros – em geral os outros – são sempre maus. Perceberemos, então, que o mundo que temos é construído na relação de poder, no conjunto das relações que se tecem na vida cotidiana, em tantas instâncias, desde aquelas em que estamos envolvidos, até aquelas que, em geral, são consideradas as únicas nas quais as coisas seriam decididas.
Percebemos então que não se trata de lutar contra o poder, que em si não é mau nem bom, mas se trata de compreender e de, eventualmente, mudar as relações de poder em que estamos envolvidos todos nós. Trata-se de resistir mais e melhor.
–Michel Foucaul foi filósofo e professor de História dos Sistemas de Pensamento no College de France de 1970 a 1984, quando faleceu. Nascido em 1926 completaria 85 anos em 2011.
O texto acima é parte do material didático do Programa nacional de formação em Administração Pública – PNAP.
Publicado no jornal LinhaViva, do Sinergia e em WWW.sintrajusc.org.br