NEPOTISMO: UM RETROCESSO INACEITÁVEL

 
“As leis foram feitas para serem violadas”. Eis um infeliz ditado popular que parece mostrar a sua pertinência temática no Judiciário brasileiro.
 
Reportagem veiculada pelo jornal Folha de S.Paulo na semana passada revelou que o ministro Cezar Peluso nomeou um casal para cargos de confiança no Supremo Tribunal Federal, forçando um entendimento de que não haveria impeditivo legal para contratação de parentes em um mesmo órgão desde que não haja subordinação entre eles. 
 
Por mais condenável que possa parecer, a mais alta Corte do país, por iniciativa de seu Presidente, se prepara para estudar uma maneira de adaptar o texto de um dispositivo legal de forma a facilitar a transgressão de dois dos mais importantes princípis constitucionais: a impessoalidade e a moralidade. É deles, aliás, que deriva um outro, a eficiência. 
 
Trata-se de uma pretendida reforma da Súmula Vinculante n.º 13, baixada pelo STF em 2008, que inaugurou uma ri­­gorosa interpretação ao preceito constitucional que proíbe a prática do nepotismo em todas as esferas e instâncias do poder público. A Cons­­tituição já era explícita nesse sentido, mas o nepotismo corria até então livre, leve e solto. Alegava-se que a norma só seria aplicável se houvesse lei específica para coibir a nomeação indiscriminada e ilimitada de parentes no serviço público para cargos comissionados. Filhos, sobrinhos, esposas, genros e noras dos gestores públicos multiplicavam-se, reproduzindo-se indefinidamente como que formando uma nova versão das velhas dinastias.
 
A Súmula Vinculante n. 13/STF, embora imperfeita e marcada por dubiedades que deram margem a novas tentativas de transgressão e a controvérsias jurídicas, cumpriu, até então, o seu papel legal e, sobretudo, moral que a inspirou. Se antes ainda persistiam, cinicamen­­te e ao sabor dos interesses pessoais e familiares de alguns gestores públicos, o dispositivo serviu até o momento para deixar clara a imoralidade, a inconveniência e a ilegalidade de tais nomeações.
 
O relator do caso no STF foi o ministro Carlos Ayres Britto, que destacou em seu voto que, em respeito aos princípios da moralidade, da eficiência, da impessoalidade e da igualdade, “deve-se tomar posse nos cargos, e não dos cargos”. O voto foi acompanhado por unanimidade pelos ministros.
 
Pelo texto original, viola a Constituição a nomeação de cônjuge de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança. Assim, esta norma derivada da Constituição seria um impeditivo para que um casal fosse nomeado para exercer cargos comissionados  no Supremo Tribunal Federal (STF), cujo ato foi assinado pelo seu próprio presidente, o ministro Cezar Peluso.
 
A revelação desse fato veiculado pela imprensa obrigaria o STF a adotar uma de duas alternativas: ou revogar as nomeações ou fazer mudanças na Súmula. Preferiu-se a segunda alternativa deitando-se por terra anos de intensos estudos e debates combatendo o nepotismo.
 
No segundo semestre, o dispositivo passará por uma rediscussão no Supremo, a partir da qual, é bem possível que o casal deixe de ser atingido pela vedação. Assim como todos os demais casais atuais e futuros que venham a ser contratados na mesma repartição. Vai ser necessária uma dose extra de espírito público e democrático para que os demais Ministros não permitam esse retrocesso. Pensar o contrário significará um afrouxamento de regras que abre perigoso precedente para outros. Sem dúvida uma regressão que deveria ser sumariamente evitada. A Ordem dos Advogados do Brasil já disse – na mesma reportagem do periódico – que o ato de nomeação fere a Constituição.
 
Por sua vez, o Conselho Nacional de Justiça já havia decidido em pelo menos duas ocasiões que a nomeação de parentes, mesmo sem subordinação, é ilegal. “Tem 200 milhões de pessoas para escolher, por que logo um parente?”, perguntou o conselheiro Jefferson Kravchychyn em um dos casos.
 
Poderíamos ser até mais específicos: será que dentre todos os servidores concursados do STF não haveria dois servidores sem relação de parentesco, gabaritados a exercer as funções para as quais o casal foi contratado? Ou mesmo no âmbito do Poder Judiciário da União, que congrega mais de 100 mil servidores efetivos?

O presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Mozart Valadares, disse à Agência Brasil que a revisão da súmula é um retrocesso. A entidade foi a autora da Ação Declaratória de Constitucionalidade que resultou na edição da súmula antinepotismo pelo STF em 2008. A AMB pedia que o tribunal estendesse os efeitos da Resolução 7 do Conselho Nacional de Justiça, que proíbe o nepotismo no Judiciário, aos demais poderes.

Mozart Valadares disse que a AMB se posiciona contra qualquer revisão, porque a medida trouxe moralização para o serviço público e atendeu aos anseios da sociedade. Ele acredita que não há espaço para as interpretações que permitam o nepotismo quando não há relação de subordinação entre os envolvidos, conforme entendeu Peluso. “Quanto mais rigorosa a [norma], melhor”, afirmou o presidente da AMB.

O combate ao nepotismo sempre foi uma bandeira do SINTRAJUSC e da FENAJUFE. Tais episódios – que se espera sejam isolados e de cúpula – ensejam a necessidade de, tão logo se encerre o movimento grevista nacional em prol do PCS 4, retomarmos o debate sobre a definição de critérios objetivos para a ocupação de cargos comissionados no Judiciário, privilegiando aqueles que ingressaram na carreira pela via democrática do concurso público e, ao mesmo tempo, impedindo a formação indesejável de grupos familiares nos cargos de gestão.
 
Tempo de serviço, formação adequada, habilidades gerenciais ou perfil operacional são alguns dos critérios objetivos que podem ser estabelecidos para os mais diversos cargos comissionados hoje existentes no Judiciário. Muito embora esses cargos sejam de livre nomeação e exoneração, tais elementos em nada atentam contra os princípios da Administração pública, o que não ocorre nas relações de parentesco. A definição desses critérios concorre à perfeição dos princípios constitucionais e, em última análise, melhor atende ao interesse público. Enfim, o Estado não pode mais ficar a mercê de projetos pessoais e patrimonialistas de uns poucos.
Por ora, ficam essas reflexões para que os companheiros discutam em cada setor os temas aqui propostos.