Promessa do Congresso Nacional, o Protocolo da ONU para o Combate à Tortura prevê a criação de um comitê supra-nacional e de uma entidade semelhante a um observatório para monitorar denúncias de maus-tratos e torturas.
A tortura nas instituições prisionais de todo o país não é nenhuma novidade; trata-se de um problema que há décadas se arrasta no país sem que o Estado brasileiro consiga interromper tamanha violação de direitos. Um mecanismo legislativo internacional, no entanto, se aprovado pelo país, poderia contribuir na prevenção dessa prática. Adotado pela Organização das Nações Unidas há quatro anos, em dezembro de 2002, e assinado pelo Brasil em outubro de 2003, o Protocolo Facultativo da ONU para o Combate à Tortura prevê a criação de um órgão supra-nacional, formado pelos países que ratificaram seu conteúdo, que funcionaria como uma espécie de “Observatório da Tortura”. Ou seja, seria um órgão ou instituto para monitorar as unidades prisionais em todo o país, sejam elas manicômios, prisões, delegacias ou unidades da Febem (Fundação do Bem-Estar do Menor).
“Esse órgão poderia entrar em qualquer unidade prisional sem autorização prévia dos governos estaduais”, explica o coordenador da Comissão Permanente de Combate à Tortura do governo, Pedro Montenegro. Com atuação descentralizada, dividida de acordo com as regiões do país, o Observatório emitiria relatórios sobre as unidades de internação. Os documentos não seriam públicos, já que seu objetivo não é alardear os casos de tortura, “mas fazer avaliações internas sobre a situação de acomodação dos presos, a infra-estrutura do cárcere, apurar denúncias de maus-tratos e exigir que as instituições problemáticas passem por mudanças”, explica Montenegro, que também é ouvidor da Secretaria Especial de Direitos Humanos.
Casos extremos, como aqueles em que a instituição prisional não modifica sua política de tortura, podem levar à divulgação. Mas a confidencialidade deve ser mantida até o último momento, porque será o que garantirá o caráter público do Observatório.
O órgão, quando criado, será composto por funcionários públicos contratados, como forma de garantir a dedicação integral. Será uma instituição multidisciplinar, composta por médicos, psicólogos, promotores, enfermeiros, todos profissionais qualificados para lidar com os maus-tratos e as torturas.
Montenegro não se mostra intimidado com uma possível oposição a este órgão monitorador. “É esdrúxulo imaginar que algum governo associe a prevenção aos direitos humanos com ‘direitos de bandidos’, eu não posso conceber isso”, afirma. Segundo ele, o Observatório visa a melhorar a administração penitenciária num âmbito nacional, e não prejudicá-la.
À espera do Congresso
A aprovação do Protocolo Facultativo para o Combate à Tortura aguarda a votação em plenário do Congresso Nacional, que nunca colocou o tema em sua pauta. Tanto o presidente da Câmara, deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP), quanto o presidente do Senado, senador Renan Calheiros (PMDB-AL), se comprometeram a votar o documento da ONU assim que a pauta do Congresso for “destrancada”, ou seja, tão logo sejam avaliadas as medidas provisórias pendentes.
José de Jesus Filho, assessor jurídico da Pastoral Carcerária, espera que o Legislativo ratifique o documento até o começo de 2007. Reunidos em assembléia nesta terça-feira (14), os coordenadores da Pastoral Carcerária reforçaram seus compromissos com o combate à tortura e aos maus-tratos nos presídios. “A coordenação da entidade vai procurar pessoalmente os parlamentares para pedir a aprovação do protocolo”, relata Jesus Filho.
Se for aprovado, o Protocolo terá status de emenda constitucional e virá acompanhado de uma política de Estado para a prevenção e o combate à tortura. Na opinião de Montenegro, a tortura é um problema tão grave quanto o das doenças para o Ministério da Saúde ou o da evasão escolar para o Ministério da Educação. O chamado Sub-Comitê de Prevenção à Tortura, no entanto, não pode mais contar com a participação do Brasil, pelo menos até 2008. “O Congresso Nacional deveria ter ratificado o documento neste mês de novembro para que o Brasil pudesse ingressar”, explica o assessor jurídico da Pastoral Carcerária.
Combate à prática
Parte da dificuldade em se combater a prática da tortura pelos países decorre da dificuldade em se documentar, provar e qualificar a tortura, hoje modernizada e generalizada em todo o Brasil. “Onde não há denúncias, não significa que não haja tortura. Pode ser que haja o silêncio, o ocultamento”, sentencia Montenegro.
O Ouvidor de Polícia do Estado de São Paulo, Antonio Funari Filho, informa que há 44 casos de tortura documentados desde o início de seu mandato, em junho de 2005. Há registros de lesão corporal causada por agentes penitenciários e de violência policial contra suspeitos que podem ser enquadrados como tortura. “A tortura é usada como método de investigação em São Paulo”, afirma Funari.
Ele cita o caso de um rapaz, dono de uma oficina mecânica, que foi preso e torturado depois que policiais militares confundiram seu local de trabalho como um ponto de tráfico de drogas. “Queriam uma confissão. Esse caso me deixou preocupado”, diz o Ouvidor de São Paulo. “Vejo, ainda, que uma parte da opinião pública considera normal existir tortura nas investigações”, completa.
Funari também avalia a modernização da tortura. “Hoje existe a tortura psicológica, que não deixa marcas. Há casos de pessoas que ficaram transtornadas depois de serem submetidas à roleta-russa, por exemplo”, diz ele. Há ainda uma falta de preparação dos institutos de perícia, que não trabalham em conjunto com o Instituto Médico-Legal (IML), responsável pelo exame de corpo de delito nas vítimas de violência, maus-tratos e tortura, tornando o processo de documentação ainda mais complexo.
Fonte: Agência Carta Maior