Europa começa a revelar o arquipélago de prisões da CIA

por Giulietto Chiesa
Le Monde Diplomatique

Há três anos, Robert Kagan, politólogo neoconservador norte-americano, apresentou na mídia européia sua tese sobre ‘dois Ocidentes’ [1]: a ‘poderosa’ América do Norte e a ‘fraca’ Europa. Sem consideração pelos seus amigos do Velho Continente, Kagan afirmou, em um tom de desprezo muito popular entre os ‘neoconservadores’, que os europeus se encontravam doravante ‘fora da história’, muito presos aos obsoletos valores ‘tolerantes’ do Estado de Direito.
O 11 de setembro, data dos atentados de Nova Iorque e Washington, marca o antes e depois da ‘revolução imperialista’. Como membro da Comissão Especial de Inquérito do Parlamento Europeu sobre ‘a suposta utilização pela CIA de países europeus para transporte e detenção ilegal de pessoas’ [2], ouvi repetidas vezes, em cada entrevista, que o 11 de setembro impunha ‘mudanças necessárias’ nas regras do jogo internacional.
Como afirma Dan Fried, assistente do secretário de Estado norte-americano para assuntos europeus e da Eurásia, os Estados Unidos ‘enfrentam uma nova ameaça’ e cada um deve compreender que ‘o sistema legal atual é incompatível com a nova batalha que exige esta guerra’ [3]. Esta argumentação, em tons mais ou menos diferenciados, foi retomada diante dos parlamentares europeus por Richard Durbin, senador democrata de Illinois, Arlen Specter, senador republicano da Pensilvânia, assim como pelo representante democrata da Flórida, Robert Wexler.
Na Europa é comum afirmar que a tortura é ilegal, injustificada e mesmo inútil para confirmar a culpabilidade de um acusado. Em compensação, o discurso público norte-americano, mesmo na mídia mais séria, cometeu graves deslizes concernentes a esta questão. Autores prestigiados não hesitaram em estabelecer distinções, às vezes escabrosas, entre ‘a tortura simplesmente’, ‘graus de tortura’, e a tortura em ‘certas circunstâncias’.
Membros do governo dos Estados Unidos (o vice-presidente Richard Cheney e o secretário da Defesa Donald Rumsfeld) e funcionários de todos os níveis do governo Bush julgaram ‘inaceitável’ a invocação dos Direitos Humanos em se tratando de supostos terroristas. Juristas conservadores como o atual secretário da Justiça, Alberto González, elaboraram novas categorias jurídicas, como a de ‘inimigos combatentes’, para negar aos suspeitos de cumplicidade com o terrorismo a aplicação dos direitos garantidos pelas convenções internacionais. Segundo John Billinger, conselheiro jurídico de Condoleeza Rice, a Convenção de Genebra para os prisioneiros de guerra é uma lex specialis, ou seja, uma ‘anomalia’, uma ‘exceção’ que não pode ser mais aplicada desde o 11 de setembro.

“Deixai aqui todos os direitos e garantias”

Wexler refutou com veemência a objeção, segundo a qual as extraordinary renditions (‘detenções extraordinárias’, ou seja, interpelação clandestina, executada por agentes secretos sem mandado de detenção judiciária, de suspeitos de qualquer lugar do mundo, para levá-los a prisões secretas onde podem ser submetidos a tortura) poderiam ser consideradas como um terrorismo de Estado. Conforme Wexler, ‘Ainda que façamos coisas ilegais ou prejudiquemos alguém – e sei que às vezes se trata de coisas execráveis – ninguém pode nos pôr no mesmo nível dos terroristas.’
Em suma, Abu Ghraib, a tortura, Guantánamo, as extraordinary renditions e a violação dos direitos humanos no Iraque ou no Afeganistão, seriam simples ‘efeitos colaterais’ secundários. Não devem ser punidos, já que o Estado, inteiramente empenhado na luta contra o terrorismo, tem o direito de se subtrair ao campo de aplicação das normas jurídicas anterior ao 11 de setembro. A partir de agora, estamos bem além da argumentação de Washington, que deixa os Estados Unidos de fora da jurisdição da Corte Penal Internacional. [4]
O presidente Bush instituiu, a partir de 13 de novembro de 2001, mediante decreto, tribunais militares extraordinários [5] que, segundo o jurista António Cassese, ‘fizeram a sociedade norte-americana retroceder 50 anos’. [6] ‘Mal-aconselhado por um ministro da Justiça em pânico, o presidente delegou-se poderes ditatoriais’ [7], observou William Safire, um dos editorialistas mais conservadores dos EUA.
Com base em informações detidas pelo presidente dos Estados Unidos, tribunais militares extraordinários podem julgar cidadãos estrangeiros suspeitos de haver participado de ações contra o Estado norte-americano ou cooperado com estas, como também de ter prejudicado gravemente seus interesses políticos e econômicos. Não é necessário sustentar tais acusações mediante provas e mesmo inculpar ou informar o acusado. A presença de um advogado não é obrigatória; o habeas corpus foi suspenso; e os processos podem ser realizados secretamente. As provas e confissões obtidas sob tortura, sem validade nos processos habituais, são aceitas aqui. A condenação à morte pode ser pronunciada por maioria de dois terços (dois juízes militares entre três), e não por unanimidade, como é o caso nos tribunais de justiça ordinária. Eles não têm mais de fazer valer sua ‘convicção íntima’ da culpabilidade do acusado, que não dispõe de nenhuma possibilidade de interpor recurso judicial ao veredito.
Na base naval de Guantánamo funciona uma comissão militar deste tipo. Não sabemos se existem outras e onde, porque o procedimento é rigorosamente secreto. No momento da promulgação do decreto do presidente Bush, alguns protestos desencadearam vagas promessas de modificação, porém o decreto jamais foi retirado. [8]

Prisões secretas na Polônia e Romênia

A existência de prisões secretas fora da Europa (Afeganistão, Síria, Marrocos, Egito, etc.) é conhecida, assim como a de outros centros de detenção em lugares ainda desconhecidos. Lá continuam encarcerados, desde 2003, por exemplo, Khaled Cheikh Mohammed e Ramzi Binalchibh. Ambos, supostos organizadores (confessos, segundo informações vazadas pela CIA) do 11 de setembro. Nunca foram julgados, nunca reapareceram. Ainda estarão vivos?
Em 4 de outubro de 2001, Lord Robertson, antigo secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), tornou pública a solicitação do embaixador extraordinário dos Estados Unidos em Bruxelas, Franck Taylor, para aplicar o artigo 5 do Tratado da Aliança Atlântica [9]. Um tratado renovado durante as celebrações do quinquagésimo aniversário da OTAN em Washington, em1999, em plena guerra contra a Iugoslávia. Ele converte a OTAN, aliança defensiva, em uma aliança ‘preventiva’ cuja zona de intervenção se estende a todo o planeta.
A amplitude das obrigações européias de assistência aos Estados Unidos em sua luta contra o terrorismo, tais como haviam sido aceitas pelos países membros da OTAN, é enorme. Entre outras, observa-se o empenho em ‘reforçar a troca de informações, seja bilateralmente, seja ao nível das estruturas competentes da OTAN’; ‘concessão de meios necessários para sustentar diretamente operações contra o terrorismo’; ‘autorização de sobrevôo para aviões militares dos Estados Unidos e países aliados operando contra o terrorismo’; a permissão ‘aos Estados Unidos e seus aliados de aceder aos portos e aeroportos dos países da OTAN para operações de luta contra o terrorismo, especialmente para o abastecimento de combustível, em conformidade com os procedimentos nacionais’ [10].
É certo que as obrigações no centro da OTAN não autorizam violações, por Washington e pelos serviços secretos norte-americanos, dos direitos humanos e das leis internacionais. Mas segundo o relatório de Dick Marty, presidente da Comissão de Questões Jurídicas e dos Direitos Humanos da Assembléia Parlamentar do Conselho Europeu, inúmeros Estados da União Européia ‘não foram vítimas de maquinações americanas’, visto que eles teriam ‘participado voluntariamente’ em diferentes níveis.
Eis o motivo pelo qual, sob diferentes pretextos, os governos e as autoridades européias ouvidos pela Comissão, até o presente recusaram-se a colaborar com a investigação, seja negando ou apresentando desmentidos de pouca credibilidade. É o caso, particularmente, dos governos da Polônia e da Romênia, dois Estados bastante suspeitos de manter ou ter mantido, em prisões secretas, prisioneiros capturados clandestinamente pela CIA, em diversas regiões do mundo.
Os adversários da investigação, especialmente uma parte da direita do Parlamento Europeu, deputados poloneses, bálticos, britânicos e alemães, afirmaram que as duas comissões de inquérito (a do Conselho da Europa e a do Parlamento Europeu) não haviam confirmado a culpabilidade dos governos europeus (ou de outros níveis da administração). Alguns chegaram mesmo a agradecer aos Estados Unidos pela sua ‘grande contribuição à segurança’.

Casos documentados de seqüestros e torturas

As teses que mostram que há na Europa deputados mais norte-americanos que os norte-americanos foram rechaçadas pela Comissão do Parlamento Europeu. Uma maioria de 25 votos (socialistas, liberais democratas e verdes) contra 14, e 7 abstenções, pronunciou-se a favor do prosseguimento das investigações.
O trabalho de investigação ultrapassou as suposições e os indícios. Existe, a partir de agora, uma documentação precisa sobre os 1080 vôos da CIA, com escala em aeroportos europeus, entre 11 de setembro de 2001 e final de 2005. Está provado que 14 países – entre eles, Alemanha, Suécia, Itália, Bélgica e Espanha – acolheram detenções ilegais. Dois outros membros da União Européia, Polônia e Romênia, mantiveram verdadeiros centros de detenção temporária e ilegal de supostos terroristas, durante um período que não foi ainda determinado. Trata-se aqui de violações do artigo 6º do Tratado da União Européia, assim como da Convenção Européia dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais.
A prova de 30 a 50 seqüestros e detenções que se seguiram foi confirmada. Apenas em um caso, a magistratura (italiana) realizou um inquérito completo, localizando e inculpando 22 agentes da CIA que operaram em Milão, no seqüestro do Imã Abu Omar, transferido para uma prisão egípcia, onde foi torturado. Um dos chefes de espionagem italiana, Marco Mancini, foi detido no último 5 de julho por ter ‘cooperado’ com este seqüestro.
Testemunhas dos detidos e torturados, advogados, numerosos representantes de organizações não-governamentais (ONGs) e alguns funcionários de alto escalão (norte-americanos e europeus) permitiram romper o sigilo. Foi assim que se pôde conhecer o caso da deportação de dois cidadãos egípcios, Mahammed Al Zary e Amed Giza, detidos na Suécia e transferidos para o Egito; de Maher Arar, cidadão canadense preso em Nova Iorque e enviado para Amã (Jordânia) pelo aeroporto de Roma-Ciampino, depois torturado durante mais de dez meses em uma prisão síria; do cidadão alemão de origem libanesa, Khaled el Masri, detido na Macedônia e transferido para o Afeganistão, onde também foi torturado.
Exemplos deste tipo são numerosos e as investigações continuam. Uma coisa é certa: vários governos europeus agiram, sem que seus cidadãos soubessem, como colônia norte-americana, ou como Estados-satélites. Eis que retornamos, por um curiosa pirueta da história, à época da ‘soberania limitada’, cara ao soviético Leonid Brejnev – mas desta vez imposta pelo norte-americano George W. Bush…

Tradução: Simone Pereira Gonçalves

[1] Robert Kagan, La Puissance et la faiblesse, Plon, Paris, 2003.

[2] Comissão instituída pelo voto de 15 de dezembro de 2005.

[3] Encontro com o assistente do secretário de Estado norte-americano para assuntos europeus e da Eurásia, em 11/05/2006, no Departamento de Estado em Washington.

[4] Criada em 18 de julho de 1998 e em função desde 1o. de julho de 2002, a Corte Penal Internacional é a primeira jurisdição universal e permanente com vocação para julgar indivíduos acusados dos mais graves crimes internacionais (crimes de guerra, crimes contra a humanidade). Os Estados Unidos (como a China e Israel) se recusaram a ratificar o estatuto da CPI, opondo-se ao julgamento, por esta corte, de cidadãos sob sua autoridade.

[5] Ler, por exemplo, Ignacio Ramonet, ‘Adeus às Liberdades’, Le Monde Diplomatique-Brasil, janeiro de 2002.

[6] La Repubblica, Roma, 21 de novembro de 2001.

[7] William Safire, The New York Times, 16 de novembro de 2001.

[8] Conforme Barbara Olshansky, diretora de Guantanamo Global Justice Initiative, Deputy Legal Director of the Center for Constitutional Rights, durante a audiência concedida à delegação parlamentar européia, em 9 de maio de 2006, em Washington.

[9] ‘As partes convêm que um ataque armado contra uma ou mais entre elas, sobrevindo à Europa ou à América do Norte, será considerado como um ataque dirigido contra todas as partes (…) e conseqüentemente elas convêm que, se houver tal ataque, cada uma das partes assistirá à parte ou partes atacadas (…).”

[10] Link: http://www.nato.int/docu/speech/2001/s011004b.htm