Mudança nas regras da Previdência Social que dificulte acesso aos benefícios, como defende o empresariado, poderia, em tese, empurrar trabalhadores para planos privados de aposentadoria, cujo patrimônio já é de R$ 370 bilhões.
Especialista em seguridade social e previdência na América Latina, o economista Carmelo Mesa Lago, da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, diz que, a partir dos anos 80, a previdência deixou de ser vista como política social. O mercado passou a encará-la como ativo financeiro – uma rica fonte de dinheiro, a matéria-prima básica do sistema financeiro, que ganha a vida manejando recursos (próprios e alheios).
A constatação de Mesa Lago ajuda a entender o apetite do setor privado pela clientela do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). A Previdência Social no Brasil é cinco vezes maior que os serviços privados (fundos exclusivos para categorias e empresas e planos que qualquer um pode adquirir numa instituição financeira). No ano passado, o INSS arrecadou R$ 110 bilhões, enquanto a concorrência coletou R$ 21,5 bilhões. Tem algo em torno de 40 milhões de contribuintes e a previdência particular, oito milhões.
No fim de 2005, o patrimônio controlado pela previdência privada era de R$ 370 bilhões, um quinto de todas as riquezas produzidas no país durante o ano. A maior parte dos ativos está aplicada em bolsa de valores e títulos do governo, para que se multiplique, pague aposentadorias futuras e garanta lucros ao agente financeiro que administra a bolada.
Uma mudança nas regras da Previdência Social que dificulte o acesso das pessoas aos benefícios, como defende o empresariado, poderia, em tese, empurrar trabalhadores para planos privados de aposentadoria. “A reforma vai a tirar o setor público da Previdência para entrarem seguradoras privadas. Isso já ocorreu com planos de saúde”, diz a economista Eli Iloa Gurgel Amaral, do Departamento de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que se doutorou com uma tese sobre Previdência.
Por ter um caráter publico e de distribuição de renda, o INSS beneficia pessoas que ganham pouco e não poderiam, todas elas, mergulhar num plano privado. Para se ter uma idéia, dois terços dos benefícios pagos pelo INSS são de até um salário mínimo. Mas é possível que, com mais dificuldade para conseguir benefícios da Previdência Social, pelo menos uma parte buscasse planos privados. Qualquer migração já resultaria em lucro para o sistema financeiro.
Privatização gradual
A desestatização gradual do INSS parece ser, inclusive, uma estratégia de forças políticas e do sistema financeiro para facilitar a privatização total no futuro. Especializado em contas públicas, o economista Francisco Lopreato, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), diz que o governo teria de contornar problemas difíceis, caso decidisse vender o INSS.
Realizada a privatização, quem ficaria com as contribuições de um trabalhador feitas durante, por exemplo, 20 anos? Como calcular quanto cada pessoa recolheu exatamente? Como saber quem estaria coberto pelo serviço privado? “Essa operação não é nada trivial, haveria um custo fiscal muito grande para o Estado. Se não, já teriam privatizado”, afirma Lopreato.
Nessa estratégia de privatização passo a passo, há quem veja um elemento fundamental: a desmoralização da Previdência Social. Para isso, contribuiria a abordagem do INSS apenas sob o enfoque de um caixa à beira da falência, que supostamente estaria condenado a quebrar no futuro. Segundo alguns, esse tipo de avaliação afasta as pessoas da Previdência pública colaborando para que haja uma espécie de profecia que se auto-realiza – a expectativa de que algo ocorra acaba fazendo com que aconteça mesmo.
“A Previdência sofre uma campanha de difamação sem tréguas. Que empresa privada resistiria a isso?”, afirma o presidente da Associação Nacional dos Auditores-Fiscais da Previdência, Ovídio Palmeira Filho.
Segundo a economista Eli Iola, a recuperação da Previdência depende de estímulos para que as pessoas entrem no sistema. Na avaliação dela, o resgate requer uma iniciativa que vai na contramão de tudo o que dizem empresários e banqueiros: aumentar o valor dos benefícios. Hoje, o pagamento médio da Previdência é de pouco mais de R$ 500, valor baixo, que não atrai. “Ou a confiança é resgatada, ou o sistema vai continuar num processo de desmonte”, diz a professora da UFMG.
Fonte: Agência Carta Maior