O professor Boaventura de Sousa Santos, ligado ao Fórum Social Mundial, explica em carta a um intelectual judeu israelita por que recusa o convite para participar de um Congresso em Israel. “Meu Caro Frank, o teu país não
quer a paz, quer a guerra porque não quer dois Estados. Quer a destruição do povo palestino. creio que, ao pisar a terra de Israel, sentiria o sangue das crianças de Gaza e do Líbano (um terço das vítimas) enlamear os meus passos
e embargar-me a voz”, afirma.
Por Boaventura de Sousa Santos
“Escrevo-te esta carta com o coração apertado. Deixo a análise fria para a razão cínica que domina o comentário político ocidental. És um dos intelectuais judeus israelitas – como te costumas classificar para não esquecer que um quinto dos cidadãos de Israel são árabes – mais progressistas que conheço. Aceitei com gosto o convite que me fizeste para participar no Congresso que estás a organizar na Universidade de Tel Aviv.
Sensibilizou-me sobretudo o entusiasmo com que acolheste a minha sugestão de realizarmos algumas sessões do Congresso em Ramalá. Escrevo-te hoje para te dizer que, em consciência, não poderei participar no congresso. Defendo, como sabes, que Israel tem direito a existir como país livre e democrático, o mesmo direito que defendo para o povo palestino. “Esqueço” com alguma má consciência que a Resolução 181 da ONU, de 1947, decidiu a partilha da Palestina entre um Estado judaico (55% do território) e um Estado palestino (44%) e uma zona internacional (os lugares santos: Jerusalém e Belém) para que os europeus expiassem o crime hediondo que tinham cometido contra o povo judaico.
“Esqueço” também que, logo em 1948, a parcela do Estado árabe diminuiu quando 700.000 palestinos foram expulsos das suas terras e casas (levando consigo as chaves que muitos ainda conservam) e continuou a diminuir nas décadas seguintes, não sendo hoje mais de 20% do território. Ao longo dos anos tenho vindo a acumular dúvidas de que Israel aceite, de fato, a solução dos dois Estados: a proliferação dos colonatos, a construção de infra-estruturas (estradas, redes de água e de electricidade), retalhando o território palestino para servir os colonatos, os check points e, finalmente, a construção do Muro de Sharon a partir de 2002 (desenhado para roubar mais território aos palestinos, os privar do acesso à água e, de fato, os meter num vasto campo de concentração).
As dúvidas estão agora dissipadas depois dos mais recentes ataques na faixa de Gaza e da invasão do Líbano. E agora tudo faz sentido. A invasão e destruição do Líbano em 1982 ocorreram no momento em que Arafat dava sinais de querer iniciar negociações, tal como a de agora ocorre pouco depois do Hamas e da Fatah terem acordado em propor negociações. Tal como naquela época, foram forjados os pretextos para a guerra. Para além de haver milhares de palestinos raptados por Israel (incluindo ministros de um governo democraticamente eleito), quantas vezes no passado se negociou a troca de prisioneiros?
Meu Caro Frank, o teu país não quer a paz, quer a guerra porque não quer dois Estados. Quer a destruição do povo palestino ou, o que é o mesmo, quer reduzi-lo a grupos dispersos de servos politicamente desarticulados, vagueando como apátridas desenraizados em quadrículos de terreno bem vigiados. Para isso dá-se ao luxo de destruir, pela segunda vez, um país inteiro e cometer impunemente crimes de guerra contra populações civis.
Depois do Líbano, seguir-se-á a Síria e o Irã. E depois, fatalmente, virar-se-á o feitiço contra o feiticeiro e será a vez do teu Israel. Por agora, o teu país é o novo Estado pária, exímio em terrorismo de Estado, apoiado por um imenso lobby comunicacional – que sufocantemente domina os jornais do meu país – com a bênção dos neoconservadores de Washington e a vergonhosa passividade a União Européia. Sei que partilhas muito do que penso e espero que compreendas que a minha solidariedade para com a tua luta passa pelo boicote ao teu país. Não é uma decisão fácil. Mas creio que, ao pisar a terra de Israel, sentiria o sangue das crianças de Gaza e do Líbano (um terço das vítimas) enlamear os meus passos e embargar-me a voz.”
* Sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal)
Fonte: Agência Carta Maior