Histórico da luta anticolonialista na África e “onda” de governos de esquerda na América Latina devem confluir para criação de uma frente mundial de luta antiimperialista no FSM 2006. Possível presença de Lula, Evo, Kirchner, Vázquez e Bachelet em Caracas deve esquentar debate. – Verena Glass – Carta Maior 12/01/2006
São Paulo – A sexta edição do Fórum Social Mundial (FSM) pode ser um divisor de águas para o movimento altermundista, após cinco anos de busca de uma unidade da sociedade civil organizada mundial na luta contra o neoliberalismo. Muito em função da nova conjuntura política da América Latina, hoje possivelmente a mais forte fermentadora do FSM, grande parte das organizações que o constituem querem agora dar um passo adiante e criar uma frente mundial de luta contra o imperialismo, simbolizado, grosso modo, pelo projeto político dos EUA e de seu presidente, George Bush.
Já em princípio diferente das edições anteriores, o FSM 2006 ocorre de forma descentralizada, num primeiro momento em Mali, África, na cidade de Bamako, de 19 a 23 de janeiro, e logo depois em Caracas, Venezuela, de 24 a 29. Um terceiro evento do FSM 2006, previsto para ocorrer no Paquistão, foi adiado em função do recente terremoto que arrasou parte do país.
O mais importante aspecto da realização do Fórum na África e na América Latina, porém, deve ser a possibilidade de confluência de dois processos históricos distintos para a construção de uma coalizão mundial antiimperialista: de um lado, o longo processo das lutas anticolonialistas africanas, que originou a articulação dos chamados países não alinhados na década de 50 e, mais tarde, a coalizão tricontinental de movimentos de esquerda para a construção do socialismo nos países recém independizados, e, de outro lado, o recente processo de empoderamento de partidos de esquerda e governos progressistas na América Latina.
Bamako e sociedade civil – O primeiro grande evento em Mali, previsto para ocorrer no dia 18, um dia antes do início do FSM, deve ser o lançamento de uma frente mundial antiimperialista, movimento puxado pelo Fórum Mundial das Alternativas através de seu coordenador, o sociólogo egípcio Samir Amin.
Segundo José Luiz Del Roio, também membro do Fórum Mundial das Alternativas e seu representante no Conselho Internacional e no Conselho Hemisférico do FSM, mais do que um ato político – nos moldes do Manifesto de Porto Alegre, assinado por uma série de intelectuais no FSM 2005 -, o objetivo de Amin é articular campanhas a partir da elaboração dos movimentos sociais africanos e asiáticos, e levar a idéia para Caracas.
Como base da construção da frente antiimperialista em Bamako, Amin sugere a revisitação da Conferência de Bandung, que em 1955 reuniu vinte e nove países da Ásia e da África – e lideranças como o primeiro-ministro da Índia Nehru, o presidente Nasser, do Egito, Chou En Lai, premiê chinês, o imperador Haile Salassié, da Etiópia, e os reis do Marrocos e do Camboja, entre outros -, declarando crime o imperialismo e sugerindo um Tribunal da Descolonização com a responsabilização dos países imperialistas pelas violações cometidas no período colonial. Bandung também lançou os princípios políticos do não-alinhamento, marcado por um socialismo não subordinado ao poder soviético, e criou o conceito de conflito Norte-Sul, o mundo dividido entre países ricos e industrializados e países pobres exportadores de produtos primários.
Para Amin, Bamako também deverá ser o ponto de partida da reconstrução do projeto Tricontinental (coalizão de movimentos sociais africanos, asiáticos e latino-americanos na década de 60 que procurou articular a construção do socialismo nos países descolonizados) e da construção de uma frente antiimperialista no centro da tríade EUA, Europa Ocidental e Japão.
Caracas e os presidentes – Na Venezuela, por outro lado, a nova conjuntura política da América Latina, marcada por uma “esquerdização” progressiva desde a eleição de Lula em 2002, está sendo considerada um momento chave para fortalecer a região como foco da resistência antiimperialista mundial, num movimento de avanço da luta antineoliberalismo.
Para o secretário de relações internacionais do MST, Gerardo Fontes, é importante lembrar que a luta contra o neoliberalismo como principal bandeira do FSM quando de seu nascimento, em 2001, se consolidou num contexto em que todos os presidentes da América Latina eram neoliberais.
“Isso mudou e, na perspectiva de darmos um passo à frente, temos que reforçar o caráter antiimperialista das nossas ações. A fase paz e amor (luta contra a guerra e pela paz) do FSM deve dar lugar a uma ofensiva maior. É uma proposta que os movimentos sociais e a Via Campesina lançaram em dezembro durante os protestos contra a OMC em Hong Kong”, explica Fontes.
Uma das peças-chave desta luta, na perspectiva dos movimentos sociais, é, sem dúvida, o presidente venezuelano Hugo Chávez. Para o dia 25, a Via Campesina organizou com ele um grande debate sobre a luta antiimperialista, evento que deverá apresentar também os resultados dos debates de Bamako.
O estreitamento das relações da Via Campesina e da Rede de Movimentos Sociais do FSM com Chávez – fenômeno que levou em primeiro lugar à escolha de Caracas como sede do FSM -, vem se dando há tempos através de um processo simbiótico pelo qual o presidente venezuelano tem aproveitado uma série de elaborações dos movimentos em sua plataforma política, dando respaldo, por sua vez, a boa parte das lutas sociais latino-americanas.
Se esta relação (que dentro do próprio universo dos movimentos, e muito mais no FSM, é controversa e nem sempre tranqüila) se estende também a outros chefes de Estado da região – a princípio Evo Morales (Bolívia), Nestor Kirchner (Argentina), Tabaré Vázquez (Uruguai), Michelle Bachelet (favorita nas eleições do Chile) e Lula -, na perspectiva de fazer da América do Sul um foco antiimperialista, é uma interrogação.
Por parte de Chávez, o esforço para que seus colegas se juntem a ele na aproximação com o FSM parece ser grande. Em encontro com Lula e Kirchner no próximo dia 19 em Brasília, o presidente venezuelano deve tentar articular a ida de todos a Caracas no dia 24 ou 25 para a inauguração de um gasoduto, momento em que uma interlocução direta com o FSM será inevitável.
Se se confirmar, a acorrida de tantos presidentes ao FSM (que, por princípio, não permite a participação de governos e partidos) deve criar algumas tensões, avalia o diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), Candido Grzybowski, principalmente porque várias ONGs rejeitam o forte protagonismo de Chávez neste Fórum.
“Por outro lado, o FSM tem que estar ciente e comemorar o fato de que estamos provocando o poder, de que o Fórum vem criando nos governantes a necessidade de se fazerem presentes. Isso é política, e não podemos nos esquivar”, avalia Grzybowski.
Segundo ele, o debate sobre a relação governos de esquerda/organizações sociais deve ser um dos pontos centrais do Fórum de Caracas, mesmo porque, a exemplo do que ocorre no Brasil e no Uruguai, há muita decepção com os governos. “Mesmo em relação a Chávez existe uma diferença entre o discurso e a prática. Todos eles estão aquém do que poderiam estar realizando. Falta ousadia. Se tivéssemos pressionado mais, certamente Lula teria sido mais ousado. Mas a América Latina é o único lugar no mundo onde existe este laboratório antiimperialista, e por isso o que acontece aqui tem uma dimensão mundial tão forte”.
Apostando suas fichas por enquanto em Chávez, os movimentos sociais seguem a lógica da parceria. Segundo Gerardo Fontes, o que existe de fato é um grande diálogo com o presidente venezuelano e um trabalho conjunto em temas como dívida externa, livre comércio, transgênicos e outros. Este diálogo será aprofundado em uma reunião com Chávez(“e qualquer outro presidente que tenha interesse”) no dia 28, mas isso de forma alguma significa um comprometimento ou uma subordinação de nenhuma das partes, garante Fontes.
Fonte: Agência Carta Maior