Por Marcela Cornelli
A política de comércio exterior do Brasil
OS QUE QUEREM UMA SAÍDA PELOS FUNDOS
Diz a revista Veja desta semana que o presidente da República tomou partido
da ala conservadora do governo em relação à sua política externa. Essa ala
— onde estariam três fortes ministros da área econômica, o da Fazenda, o
do Desenvolvimento e o da Agricultura — consideraria temerária a condução
do ministro Celso Amorim nas negociações do comércio exterior brasileiro, principalmente porque ela estaria sendo muito ideológica e levando o país a um confronto com os Estados Unidos, no qual não se teria nada a ganhar. Na quarta-feira da semana passada tinha havido uma reunião entre o presidente, o ministro da Fazenda, Antônio Palocci, o chefe da Casa Civil, José Dirceu,
e o ministro do Desenvolvimento, Luiz Furlan. O ministro da Agricultura,
Roberto Rodrigues, seria convidado também, mas estava no exterior. Segundo
os jornais na semana passada, a reunião teria sido feita para unificar a posição do governo em torno da
liderança de Amorim, depois de Rodrigues e Furlan terem feito críticas públicas ao comportamento do Itamarati na reunião preparatória da Alca, Área de Livre Comércio das Américas, em Port
of Spain, Trinidad e Tobago, dias antes.
Agora, Veja diz que o objetivo da reunião tinha sido outro e outro também o seu desfecho: “Lula quebrou o monopólio dos diplomatas na condução do
comércio exterior; advertiu-os sobre os exageros triunfalistas; e exigiu
que, a partir de agora, os ministros que integram a Câmara de Comércio
Exterior (Camex) passem a participar do processo de negociações na Alca e
na OMC, Organização Mundial do Comércio”. Na Camex têm assento Rodrigues, Furlan e o ministro da Fazenda, Antônio Palocci. Veja diz que “Lula e a ala racional do governo perceberam o perigo do isolamento do Brasil e tomaram a decisão, ainda não anunciada, de afastar o ideólogo do confronto com os EUA, Samuel Pinheiro Guimarães, o atual secretário-geral do Itamaraty”. A revista diz que Pinheiro Guimarães foi convidado por Lula a assumir a embaixada do Brasil em Buenos Aires mas que recusou. “De qualquer modo
(Pinheiro Guimarães) não deve ficar em posto de comando da chancelaria”,
diz Veja.
A notícia da demissão de Pinheiro Guimarães, que vem sendo dada por jornais mais conservadores, como O Globo e O Estado de S. Paulo há tempos, é, pelo menos por enquanto, apenas parte da pressão feita pelos partidários de um acordo na Alca e na Organização Mundial de Comércio (OMC) próximo dos termos pretendidos pelos americanos. Nesta segunda-feira, O Estado de S. Paulo anunciou, com base em informação de “alto funcionário do governo”,
que Lula estaria se preparando para substituir os negociadores da Alca até
o fim do ano. Isso significaria, de fato, tirar Amorim e Pinheiro
Guimarães. Na segunda-feira, depois da repercussão da matéria de Veja e da
do Estadão, o ministro da Casa Civil, José Dirceu, e o porta-voz do
presidente, André Singer, se manifestaram reafirmando o papel de Amorim como o representante do país nas negociações internacionais de comércio e o próprio Amorim declarou, indiretamente, que se alguém tiver que ser afastado do governo, por conta de divergências, será ele: “Quem comanda as
negociações comerciais do Itamaraty, por ordem do presidente Lula, sou eu,
não é o Samuel (…) No dia em que tiver que tirar um negociador, tem que
tirar a mim”.
O secretário-geral e o ministro são muito próximos e até aparentados: a
filha de um casou com o filho de outro. Estiveram juntos na Embrafilme, a
empresa do cinema nacional, na fase de abertura do governo militar, no
governo do general João Figueiredo. E são pessoas de princípios: os dois
saíram da estatal em virtude da censura ao filme “Prá frente, Brasil”, que
tinha cenas que denunciavam a tortura. Samuel foi demitido do cargo de
diretor do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais, em função de
suas posições de crítica à Alca, por Celso Láfer, ministro das Relações
Exteriores de Fernando Henrique, o mesmo que já foi objeto de chacota por
parte de Lula e de Amorim, por ter aceitado tirar os sapatos, sob pressão
dos encarregados da segurança num aeroporto americano.
O ministro da Casa Civil, José Dirceu, disse nesta segunda-feira que “o
Brasil precisa de muita unidade interna para enfrentar uma negociação tão
difícil e importante quanto a da Alca “. Isso é verdade. A posição do
Itamaraty na recente reunião da OMC em Cancun foi muito atacada pelos
Estados Unidos e os americanos estão trabalhando duramente para minar a
posição brasileira, que obteve aplausos amplos em outras chancelarias do
mundo em desenvolvimento, mas está sendo atacada, intensamente, dentro do
próprio país. A posição brasileira pode até não ter apoio interno
suficiente e ser derrotada. Mas não se trata de uma posição intransigente,
ideológica, esquerdista. Mesmo um ministro como Roberto Rodrigues, que se
disse “encabulado” com a “instransigência” do Itamaraty nas negociações da Alca em Port of Spain, reconheceu, em entrevista na mesma revista Veja, que foi a posição intransigente dos EUA, assumida anteriormente, que colocou as
negociações no atual ponto em que elas se encontram. “Como os americanos
não queriam colocar em pauta os subsídios agrícolas, pois esse é um tema
sensível para eles, dissemos que também nos dávamos o direito de protelar
temas mais sensíveis para nós, como o da propriedade intelectual. É uma
reação negocial óbvia”, disse Rodrigues a Veja, referindo-se às negociações
na reunião de ministros da Alca, em Quito, Equador, há um ano atrás, quando
os Estados Unidos definiram sua posição. É essa a mesma divergência básica que houve em Port of Spain: como os EUA só aceitam discutir a questão
agrícola no âmbito da OMC, o Brasil retrucou dizendo que só aceita discutir
as questões relativas aos chamados Temas de Cingapura — compras
governamentais, direitos de propriedade intelectual, garantias de
investimentos estrangeiros e outros — também na OMC. Com isso, a Alca se
limitaria a negociações menores, seria a “Alca light”, como defendida pelo
Brasil; e não a “Alca abrangente”, como querem os americanos.
Neste final de semana, a convite da chancelaria argentina, ministros do
chamado G22, o bloco liderado pelo Brasil em Cancun, reuniram-se em Buenos
Aires para discutir o que fazer em Genebra, proximamente, quando deve se
reunir um conselho de ministros da OMC com vistas a tentar desbloquear a
chamada Rodada do Desenvolvimento após o fracasso da reunião no balneário
mexicano. Veja, que previa o desmoronamento total do grupo, disse que a aliança do Brasil com Índia e China não tinha qualquer possibilidade de se manter e anunciou até que a África do Sul tinha caído fora do bloco. A reunião de Buenos Aires não foi, no entanto, o que a revista imaginava. Comparecerem, além de Brasil e Argentina, China, Índia, África do Sul, México e mais Paraguai, Chile, Cuba, Egito e Venezuela. E Amorim declarou aos jornalistas, após o encontro, que o presidente da OMC, Supachai Panitchpakdi, lhe telefonou dizendo que a negociação do grupo com os
Estados Unidos e União Européia era essencial para a entidade. Amorim
anunciou também que o presidente da República do Brasil irá à Argentina nos
próximos dias para assinar, junto com o presidente argentino, Nestor
Kirchner, um documento que deverá ser chamado de “O Consenso de Buenos
Aires”, que afirmaria o interesse dos dois países por um caminho de
desenvolvimento diferente do que foi traçado pelo outro Consenso, o de
Washington, de cerca de 15 anos atrás, e de má memória. Kirchner e Lula,
portanto, estariam interessados numa saída da crise nas negociações do
comércio global pela porta da frente. Com as pressões como as que se
exercem através de órgãos de imprensa conservadores contra Samuel Pinheiro
Guimarães e Celso Amorim, os amigos brasileiros dos americanos querem que o
país recue e saia pela porta dos fundos.
Fonte: Site Oficina da Informação
www.oficinainforma.com.br