Entidades de direitos humanos criticam nível superficial da discussão do referendo

Foi o primeiro referendo da história do país e um dos maiores da história do mundo. Em questão, o artigo 35 do Estatuto do Desarmamento, aprovado em 2003, que instituiria a proibição do comércio de armas e munições no país. Na tarde de segunda-feira (24), foi divulgado o resultado final: o “não” venceu com 63,94% contra 36,06% feitos pelo “sim”. Além dos votos válidos, foram registrados 1,39% dos votos em branco, 1,68% dos votos nulos e 21,85% de abstenções (pessoas aptas que ou não compareceram ou justificaram a sua ausência aos respectivos domicílios eleitorais).
Após um processo rápido e uma campanha que sofreu críticas de todos os lados, a falta de coesão da posição e do engajamento das entidades da sociedade civil se reflete agora também na avaliação sobre o resultado do referendo e as lições que precisam ser extraídas da consulta feita à população brasileira. Embora haja diferenças na avaliação sobre o resultado, há acordo que um dos grandes saldos do referendo foi a superficialidade da discussão sobre o tema.
Para as entidades da área de direitos humanos ouvidas pela Carta Maior, um dos fatores que contribuiu para isso foi o método do referendo, que teve várias debilidades e incentivou a despolitização da discussão, ao invés de ter promovido o envolvimento da população no debate tanto da questão sobre a qual as pessoas deveriam opinar quanto em relação ao problema de fundo do estatuto: o combate à violência no Brasil.
A definição sobre quem poderia fazer campanha acabou por influenciar um formato centrado apenas nas duas frentes parlamentares (que defendiam o “sim” e o “não”). “Isso deixou o referendo como algo exclusivo dos partidos e do parlamento, e num cenário extremamente complicado, pois estas frentes não foram resultado de debate programático dentro das legendas, tendo algumas que possuíam parlamentares defendendo o sim e o não”, critica Ivônio Barros, coordenador do Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos (FENDH).
Este fator, aliado às normas do Tribunal Superior Eleitoral (que, entre outras coisas, impediram a manifestação de posição de entidades da sociedade civil), acabou criando um clima de disputa eleitoral. “Isso diminuiu o debate, virando uma propaganda e não um debate político. E o pior é que pegaram a parte ruim da campanha eleitoral, as estratégias publicitárias que transformam os candidatos e idéias em produtos”, comenta Barros. Desta forma, continua, o formato da campanha afastou as pessoas e grupos sociais organizados, prejudicando a reflexão sobre os problemas colocados pelo referendo.

Discursos

Outro problema detectado foram os discursos usados pelos defensores do “sim” e do “não”. Na avaliação de Ivônio Barros, o referendo acabou sendo colocado para a população como se fosse uma tábua de salvação sobre a questão da violência. “Ficou uma idéia de que a proibição iria resolver todo o problema da segurança, o que não é verdade. O sim era relativo apenas ao comércio de armas e munição, medida importante mas não uma resposta completa e total ao problema da segurança pública no Brasil”. Segundo ele, esta perspectiva de resolução de todos os problemas era quase uma ofensa à compreensão das pessoas, que entendiam o caráter parcial e limitado da medida colocada em consulta pelo referendo.
Para Paulo Carbonari, do Movimento Nacional de Direitos Humanos, as campanhas se utilizaram de expedientes conservadores e favoreceram a construção de concepções maniqueístas sobre o problema. “A dicotomia entre o ‘bandido’ e o ‘homem de bem’ foi muito usada, reforçando estereótipos e conceitos mal colocados”. Segundo Carbonari, houve uma inversão sobre o que estava colocado como “direito da população” e os defensores do sim não conseguiram trabalhar com a idéia de que a segurança, este sim um direito essencial da população, promovida pela proibição poderia trazer aos cidadãos.

Resultados

Segundo Paulo Carbonari, uma das lições do resultado do referendo foi a compreensão da população sobre a atuação limitada do poder público em relação à questão da segurança pública e do combate à violência. “As pessoas manifestaram que se o Estado não dá conta de responder aos problemas elas também não estão dispostas a abrir mão de sua possibilidade de se defender”, comenta. Para Ivônio Barros, é preciso analisar com mais calma a votação, pois ela não dá condições ainda afirmar que o discurso conservador realmente foi apropriado peã população. “Acho que precisamos ter tranqüilidade e não se deixar contaminar pelo frenesi da direita, que já surge querendo colocar vários outros temas como objeto de referendo, como pena de morte e a diminuição da maioridade penal. Eles não têm esta força toda e para que estes assuntos virem referendo iria demorar ainda um bom tempo”, argumenta.
No entanto, os dois divergem sobre a interpretação possível de ser feita sobre a participação da população no referendo (foi registrada abstenção de 21,85%, número bem mais alto do que a média de aproximadamente 14% contabilizada nas últimas eleições). Paulo Cabonari vê como positiva presença dos brasileiros apesar do alto índice de abstenções. “A expectativa colocada por várias pessoas que estavam descrentes da importante função do referendo era de 30% de abstenção e vimos que foi bem abaixo disso”, pontua. Cabonari avalia que o referendo contribuiu pra aprofundar a democracia brasileira e que deve ser usado como instrumento de democracia direta da população em relação a temas estratégicos.
Ele lembra que já existem demandas reprimidas de consultas como estas para assuntos como a entrada do Brasil na Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e gestão da dívida externa do país. Já na opinião de Ivônio Barros, apesar do resultado confuso, é possível afirmar que a população deu sua resposta ao método equivocado do referendo e à superficialidade da discussão mostrando que não via o referendo com tanta importância como ele era colocado nas campanhas.
Uma concordância para ambos foi, inclusive pelas restrições legais, a dificuldade por parte dos movimentos sociais e entidades da sociedade civil de entender seu papel nesta disputa. A falta de coesão se deu desde as próprias entidades, que tiveram dificuldade em unificar um discurso unitário em torno do “sim” que contemplasse as especificidades de cada uma das lutas populares até o diálogo do conjunto das entidades para com a frente parlamentar “por um Brasil sem armas”. Para Paulo Carbonari, o referendo colocou o desafio das entidades da sociedade civil refletirem sobre seu lugar dentro de processos de democracia direta que nem este. “Já aprendemos a participar das eleições mas ainda precisamos aprender a trabalhar com mecanismos de consulta direta sobre temas”, pondera.

Fonte: Agência Carta Capital