No início da semana passada, o presidente Lula assinou e enviou para apreciação do Congresso Nacional o projeto de lei complementar nº 12/2024 que pretende regulamentar trabalho dos motoristas de aplicativo para transporte de passageiro.
Apesar de o projeto ser comemorado inclusive por lideranças sindicais, ele põe em xeque direitos dos trabalhadores.
Para entender melhor essa questão, leia, a seguir, artigo do coordenador de Formação Sindical do SINTRAJUSC, Adailton Pires Costa.
Segunda-feira, 04 de março de 2024. O governo federal apresentou um Projeto de Lei Complementar (PLC) para regulamentar a atividade dos motoristas de passageiros por aplicativo. O que era para ser uma festa, tornou-se uma farsa. Em vez de um projeto que avança na proteção social dos trabalhadores, essa proposta de lei revelou-se um retrocesso de décadas de conquistas trabalhistas.
Após a eleição de Lula como presidente pela terceira vez, em 2022, seus eleitores esperavam a revogação da contrarreforma trabalhista, promovida pelo governo Temer. Silêncio sepulcral sobre isso. Do mesmo modo, esperavam a revogação da contrarreforma previdenciária, promovida pelo governo Bolsonaro. Silêncio novamente. Dificuldades com um Congresso Nacional inimigo dos trabalhadores (em sua maioria) seria até uma justificativa para a omissão do governo sobre tais temas. Mas o que seus eleitores não esperavam era que o governo agiria ativa e espontaneamente contra os direitos mais básicos dos trabalhadores.
Isso é o que vemos no assim chamado “PL dos aplicativos”. Um nome sugestivo, pois é um projeto para as empresas de aplicativos e não para trabalhadores. O projeto de lei abre as portas do inferno para os trabalhadores, visto que dá legitimidade legal para as diversas inovações contratuais fraudulentas que têm surgido nos últimos anos no mundo do trabalho “uberizado”, apontando a possibilidade de ampliação dessas fraudes para outras categorias de trabalhadores. Em vez de garantir a condição de empregado com os direitos trabalhistas mínimos que decorrem dessa condição, o projeto cria a condição precarizada de “trabalhador autônomo por plataforma”, que tem sido chamado de trabalhador autônomo com direitos.
Hoje, as empresas de aplicativos vivem sob uma insegurança jurídica, pois estão sofrendo várias condenações na Justiça do Trabalho no Brasil e mundo afora. Juízes têm reconhecido o vínculo de emprego e condenado essas empregadoras a pagar os direitos celetistas dos trabalhadores contratados sob a falsa condição de autônomos. Embora haja uma tendência do STF em reformar essas decisões, a matéria é ainda nebulosa no judiciário.
Com o PL dos Apps, essa insegurança jurídica é afastada com baixíssimo custo para os grandes conglomerados de contratação de motoristas por aplicativos. Além disso, o projeto contribui para afastar a competência da Justiça do Trabalho sob a matéria, pois o seu silêncio sobre essa competência contribui para que os conflitos nesse tipo de relação de trabalho sejam empurrados para a Justiça Comum, foro em que os trabalhadores costumam sofrer derrotas em suas ações.
A justificativa de quem defende o projeto é que o mínimo está sendo garantido para esses trabalhadores. Isso não é verdade. O mínimo dos direitos trabalhistas está na Constituição Federal de 1988 e na CLT. E isso não foi garantido no projeto. O que seus defensores consideram mínimo é o valor de R$ 8,08 por hora de trabalho. Isso mesmo: um total de R$ 240,00 mensais. Cabe esclarecer que o valor total de R$ 32,10 como salário-hora mínimo previsto no projeto engloba os custos do trabalhador na prestação do serviço. Ou seja, dos R$ 32,10 a serem pagos, R$ 24,07 serão pagos para cobrir o gasto do trabalhador com celular, gasolina, seguro, etc.
Outra garantia seria o enquadramento previdenciário. Mas isso é outra falácia, pois os motoristas de aplicativos já podiam contribuir para o INSS, inclusive com tarifas abaixo do valor indicado no projeto. O MEI, por exemplo, paga 5% de contribuição previdenciária, enquanto o projeto prevê 7,5%. O projeto ainda fala de transparência nas informações contratuais, jornada que pode chegar a 12 horas e outras cláusulas genéricas, sem prever mais nenhum outro direito realmente relevante. É isso. O resto são regras de arrecadação do erário. Não há direito a férias, descanso semanal remunerado, 13º salário etc.
Apesar da miséria de direitos do projeto, muitos sustentam que os motoristas de aplicativo não querem o regime de trabalho celetista. Mas esse argumento é falacioso, pois a maioria desses trabalhadores não foi ouvida, uma parte foi ouvida por pesquisas pagas pelos empregadores e uma outra parte está sob o efeito da cantilena da ideologia do empreendedorismo, que não acredita em direitos sociais ou coisa parecida.
Além disso, o discurso de que esses trabalhadores devem escolher entre a CLT e a liberdade de horário é falsa, pois há empregados celetistas que tem flexibilidade de horário com as garantias da CLT, mostrando que é, sim, possível avançar nessa equação, em vez de retroceder. As relações de trabalho pós-pandemia estão aí para mostrar que é possível pactuar direitos com flexibilidade de horário de trabalho. Apresentar esses pares (direitos/regras X flexibilidade/autonomia) como inconciliáveis é uma estratégia do Capital de colocar os trabalhadores em xeque, como se eles não tivessem outra saída.
Esse discurso na boca dos donos do grande Capital é até esperado. Estão defendendo seus interesses. Não tem nada de novo debaixo do sol aqui. O inesperado é esse discurso estar na boca de um ex-operário, líder sindical, que tem uma história de luta pelos direitos dos trabalhadores. No xadrez, quando um peão chega ao final da carreira, ele pode ser trocado por uma peça diferente (um bispo, por exemplo). Talvez estejamos vendo isso no Brasil. O peão deixou de ser peão e se movimenta para o outro lado do tabuleiro, negando sua antiga identidade de classe.