Com sua decisão de aplicar o artigo 4º da chamada Lei de Caducidade da Pretensão Punitiva do Estado e investigar o que aconteceu com os desaparecidos e presos políticos, o presidente Tabaré Vázquez deu um importante passo para que seja esclarecida, fechada e cicatrizada a ferida aberta que o país tem ainda com relação a ditadura militar (1973-1985).
Cerca de 180 uruguaios foram mortos durante o período, a maioria na Argentina. Grupos de defesa dos direitos humanos afirmam que 36 pessoas, a maior parte estudantes e líderes sindicais, desapareceram no país. Embora a escala das atrocidades tenha sido bem maior na Argentina, onde 30 mil pessoas morreram, ou no Chile, onde os desaparecidos chegam a 3.000, o regime militar uruguaio foi de uma crueldade que assombra.
Dia após dia surgem no país novas informações que vão dando a dimensão do horror vivido pelos presos políticos nas mãos dos militares. Até agora, a vergonha de suas vítimas jogava a favor das bestas, já que as pessoas que estiveram nessas situações tão humilhantes e dolorosas foram marcadas de tal forma que não poderiam jamais revelá-los espontaneamente.
Mas desde que o presidente decidiu abrir a “Caixa de Pandora” da ditadura, paira sobre o país a aura da verdade sobre o que aconteceu. No último final de semana, o aviador aposentado Walter Malan relatou ao jornalista da Rádio 1410 AM Livre Alberto Silva, como orgias conhecidas como “chupipandas”, regadas de comida e bebidas alcoólicas, eram realizadas pelos militares. Segundo seu depoimento, estas festas quase sempre terminavam com uma espécie de “número especial”, em que um militar levava até a festinha um prisioneiro para eles “brincarem” de “submarino” enfiando sua cabeça em uma espécie de vaso com excrementos para o deleite da oficialidade totalmente bêbada.
Malan, ex-deputado pelo Partido Nacional, também contou como um soldado que impediu que um oficial violentasse uma prisioneira (“é uma presa, não é uma puta”, disse) foi violentamente aprisionado e submetido ele mesmo à tortura.
A busca pelas informações sobre o período também está sendo perseguida pelos jornais. Na quarta-feira passada, em sua primeira investigação de campo sobre este tema em 20 anos, o jornal El Observador revelou que em um prédio militar de Tacuarembó durante a ditadura torturavam os “píchis” (nome que designa os civis no jargão militar) para pegar informações. Se durante dois ou três dias não obtivessem nada, os traziam para cá, largavam soltos por aí para sair a caçá-los”.
No Informe sobre Prisão Política e Tortura, divulgado em novembro de 2004 pelo presidente chileno Ricardo Lagos, foi conhecido o arrepiante testemunho de uma moça que no momento em que foi presa tinha apenas 16 anos. Ela havia sido seqüestrada na região metropolitana e logo expulsa do país sem sua família: “fui violentada, colocavam em mim correntes, me queimavam com cigarros, inseriram ratos (na vagina), me amarraram em uma cama onde cachorros treinados me violaram”.
Os métodos dos militares uruguaios foram ensinados pelos mesmos mestres dos chilenos, dirigidos pela chamada Operação Condor (sistema de repressão com a colaboração dos regimes militares da Argentina, Chile, Paraguai, Brasil, Bolívia e Uruguai), na qual compartilhavam os métodos operativos. Nos últimos dias têm aparecido testemunhos que indicam que para “fazer falar” a um detido, os militares violentavam em sua presença a esposa grávida, e aqui também usaram cachorros adestrados para violar presas.
Silêncio
Por histórias que causam horror e indignação como estas que os militares uruguaios soltam as informações sobre o período a conta-gotas, e continuam praticando a mentira, o ocultamento e as ameaças aos que abrem a boca. Assim como no Brasil, há uma tentativa de desvalorizar a importância dessas revelações com um discurso reacionário de que “é preciso virar a página”.
Entretanto, desde que Vázquez chegou a presidência, o primeiro presidente de esquerda no país, a grande imprensa uruguaia passou por uma saudável metamorfose em sua cobertura sobre o período e o tema direitos humanos. Depois de ter mantido um voluntário e omisso silêncio durante os mais de 20 anos de democracia, nos últimos meses tem começado a falar dos desaparecidos, torturas, assassinatos, e agora dos cemitérios clandestinos.
Seria inevitável cobrir esses fatos, dado a sua importância conjuntural e estratégica para o governo de Tabaré Vázquez, eleito pela Frente Amplio – Encuentro Progresista, constituído por partidos de esquerda que se opuseram à ditadura militar e perderam militantes.
Em 1980 as Forças Armadas perdiam um plebiscito para referendar uma nova Constituição, o que abriu a possibilidade para o retorno da democracia. Em 1984, o colorado Julio María Sanguinetti venceu as eleições presidenciais. Em 1989, o blanco Luis Alberto Lacalle foi eleito presidente. Em 1995, Sanguinetti voltou à presidência. Durante a hegemonia dos blancos e colorados, ninguém tocou nesse assunto.
Os militares envolvidos com a repressão, então, não foram julgados por seus crimes, beneficiados pela mesma Lei de Caducidade, que impediu seu julgamento. A lei teve o apoio dos partidos conservadores, que pretendiam evitar que o Uruguai sofresse novos levantes nos quartéis, tal como estava enfrentando na época o então presidente argentino Raúl Alfonsín.
No entanto, a Lei de Caducidade – confirmada por um plebiscito em 1989 – não impedia a investigação do que ocorreu aos desaparecidos. Mas, os diversos presidentes que governaram após o plebiscito evitaram tocar no assunto, apesar dos pedidos das famílias dos desaparecidos e diversas organizações de defesa dos direitos humanos.
Relatório histórico
O governo do Uruguai promoveu no começo deste mês as primeiras escavações para localizar os corpos de desaparecidos políticos. Na ocasião, Vázquez anunciou a entrega de um relatório, como o exemplar e histórico chileno, por parte das Forças Armadas que detalha os paradeiros dos corpos dos desaparecidos. O anúncio foi considerado “histórico”, já que é a primeira vez, vinte anos após o fim da ditadura, que as Forças Armadas do Uruguai entregam informações a um governo civil sobre o paradeiro dos corpos. Além disso, os militares informaram sobre o modus operandi dos seqüestros dos desaparecidos e os repressores envolvidos nos casos.
Nunca antes, os militares haviam admitido oficialmente a participação de representantes das Forças Armadas no assassinato de civis durante a ditadura e o ocultamento ou eliminação (vários foram incinerados ou jogados ao mar) de seus corpos. Vázquez disse que com este relatório será possível “esclarecer, fechar, terminar com esta ferida aberta que a sociedade uruguaia possui”. Desta forma, Vázquez cumpre sua promessa de campanha de avançar nas investigações sobre os crimes contra a humanidade ocorridos durante a ditadura militar uruguaia.
Fonte: Diário Vermelho