O Brasil gasta anualmente R$ 14 bilhões no Sistema Único de Saúde (SUS) para recuperar traumas causados por armas de fogo. Há hoje no país 5,7 milhões de armas circulando. Temos apenas 3% da população mundial vivendo em nosso território, mas somos o segundo país do mundo em número de acidentes fatais por armas de fogo – tanto por acidente como resultado de homicídio doloso ou culposo. Na noite de quarta-feira (06), depois de um ano de ansiosa espera de organizações da sociedade civil que defendem os direitos humanos e de uma semana de vigília de familiares de vítimas de armas de fogo no Salão Verde da Câmara, o Congresso Nacional aprovou a realização de um referendo sobre o fim do comércio de armas e munições no país. Em outubro, a população, por meio de voto em urnas eletrônicas, responderá à pergunta “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?”.
A proibição está prevista no Estatuto do Desarmamento, já em vigor, mas ainda dependia de regulamentação – o Estatuto prevê também a autorização para o porte de arma apenas em casos de a pessoa provar a necessidade por atividade profissional de risco ou ameaça à integridade física. Se a maioria simples dos eleitores brasileiros disser sim à questão, a proibição da venda entrará em vigor na data de publicação do resultado do referendo pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Depois da batalha contra a chamada “bancada da bala” no Congresso, começa agora a luta pela conscientização e mobilização da população para o dia do Referendo do Desarmamento. Na próxima semana, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados se reúne com o Fórum Nacional de Entidades de Direitos Humanos para organizar uma campanha pelo voto “sim”. A articulação entre deputados e sociedade civil começou no início do ano, a partir da preocupação latente de que, caso não fosse aprovada no primeiro semestre, a consulta popular acabaria não sendo realizada antes do final de 2005.
“O tempo estava ultrapassando. Os partidos avaliaram isso e viram que não tinha mais jeito de enrolar. Nessa hora, o lobby das empresas de armamento não conseguiu prosperar. O clima político atual no Congresso, de que a casa precisa fazer coisas que a população considera positiva porque a sociedade está muito descrente do Congresso Nacional, também contribuiu um pouco para a aprovação do referendo depois de um ano de tramitação na Câmara”, acredita Ivônio Barros Nunes, coordenador do Fórum Nacional de Entidades de Direitos Humanos. Do total de 513 deputados, 312 participaram da votação. 258 foram a favor da consulta popular, 48, contra, e cinco se abstiveram.
Nos 45 dias anteriores à realização do referendo, será feita uma campanha de esclarecimento à população pelo rádio e pela TV. As duas frentes – uma pela proibição da comercialização de armas e a outra contrária à proibição – terão tempos iguais para defender suas posições. A campanha da sociedade civil pelo “sim” deve basear-se em seminários, debates, palestras e produção de materiais de esclarecimento. A idéia é mostrar para a população o número de homicídios e as estatísticas de mortes acidentais por armas de fogo. Devem ser criados pequenos comitês Brasil afora, funcionando a partir de um trabalho articulado entre igreja, ongs, associações de bairro, escolas. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Comissão Justiça e Paz – responsável pelo debate sobre o desarmamento dentro da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) – também serão convidadas.
“Nossa luta será muito grande pois existem interesses econômicos de grandes empresas, fabricantes e representantes de armas e munição, que querem a continuidade da venda indiscriminada de armas no Brasil”, afirma a presidente da CDHM, deputada Iriny Lopes (PT-ES). “Temos de antemão a certeza de que as partidários do “não” vão contar com um apoio significativo de recursos financeiros da indústria de armamentos e de munição. Por isso, precisamos, sair na frente”, explica.
Na avaliação do Fórum Nacional de Entidades de Direitos Humanos, o comportamento da grande mídia, especialmente das emissoras de rádio e TV, deve influenciar muito na decisão dos eleitores – principalmente porque até outubro não haverá condições de se travar um debate aprofundado com a sociedade em geral acerca deste tema. “A população não vai votar ideologicamente, mas sentimentalmente. E os fabricantes de armas já estão se organizando. Vão criar entidades com a cara da sociedade civil pra iniciar uma campanha também Não é um pessoal pra se subestimar. Estão em jogo muito interesses”, aponta Nunes.
Em nota divulgada nesta quinta-feira, a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) comemorou a aprovação do referendo como uma contribuição decisiva à construção de uma cultura de paz no país. “A Unesco considera que o esforço conjunto que uniu a Organização, a Câmara dos Deputados, o Senado Federal, os governos e as entidades da sociedade civil foi fundamental para a aprovação do referendo. É preciso agora que haja a continuidade desta parceria de sucesso no sentido de informar devidamente a população sobre os riscos da utilização das armas de fogo e a necessidade do desarmamento. Conclamamos todos os parceiros dessa nobre causa para a realização de uma Campanha Nacional pelo “sim” no referendo, que deflagre uma profunda reflexão entre os brasileiros sobre a redução do número de armas em circulação nas ruas. Se a população disser “sim” à proibição da venda de armas, o Brasil poderá, certamente, diminuir seus estarrecedores índices de violência, tornando-se um país mais pacífico e melhor para todos”, disse na nota o representante da Unesco Brasil, Jorge Werthein.
Grão de areia
Segundo a deputada Iriny Lopes, o Estatuto do Desarmamento não está pensado para combater o crime organizado. Isso seria um trabalho de estratégia, de informação e de inteligência. “Ninguém está trabalhando com a idéia romântica de combater o crime organizado desta forma. Mas não é desprezível o número de crianças que se envolvem em acidentes domésticos e de homicídios praticados em bares por excesso no uso de álcool. Mesmo os meninos e meninas que entram cedo na criminalidade e praticam roubos e furtos usam armamento que as pessoas têm em casa. Em São Paulo, a redução do número de homicídios com armas de fogo depois que se iniciou a campanha do desarmamento mostrou um saldo muito positivo”, lembra.
Na IX Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada no ano passado, várias entidades manifestaram reticências quanto à realização do referendo – sobretudo ongs ligadas ao desenvolvimento de projetos em comunidades mais carentes e organizações do movimento negro. Elas argumentaram que a questão estava mal colocada e que a realidade dessas comunidades era outra, desconhecida pela “sociedade branca do asfalto”. O questionamento faz parte de um debate mais amplo, que vai além da criminalidade: o de que é preciso afirmar que o combate à violência não se resume à proibição da venda de armas de fogo e munições no Brasil. É essa a discussão que as entidades do Fórum Nacional tentarão expor pra sociedade a partir de agora.
“Este problema, que atinge a segurança das pessoas, é muito mais complexo do que um tiroteio num ponto do Rio de Janeiro. Esse tipo de violência não vai ser em nada afetado pelo desarmamento. A criminalidade não tem acesso a armas via compra em comércio. A questão que o referendo pode colocar é que há uma série de pequenas ações que podem contribuir para uma sociedade mais pacífica. Uma delas é não ter armas em casa. Você pode salvar a vida de inúmeras crianças de uma morte acidental. Quem anda armado também corre mais risco de matar alguém ou de transformar uma discussão num bar ou um acidente no trânsito em uma situação sem volta. Esse tipo de situação o desarmamento resolve”, explica Nunes.
“Mas o problema da segurança não está aí. Um dos sinais de violência é a estatística do MEC que diz que metade das crianças que passam quatro anos no ensino fundamental terminam o ciclo analfabetas. Nas periferias das grandes cidades, em zonas de maior carência, esse número deve chegar a quase 100%. Ou seja, a escola está marginalizando crianças e contribuindo com a violência, assim como a falta de acesso à saúde e à cultura. Por isso é mais produtivo tentarmos discutir com a sociedade essas outras formas de violência. E cobrar do Estado que interfira nessas causas. O desarmamento é uma areinha dentro do deserto. Estamos aqui pra levantar um debate sobre os outros grãos de areia”, esclarece.
Fonte: Agência Carta Maior, com informações da Agência Brasil