No dia 6 de dezembro, o Ministério da Educação (MEC) divulgou a versão preliminar do Anteprojeto da Lei de Educação Superior, onde apresenta suas propostas para a reforma universitária no Brasil. Abriu-se, então, o período para contribuições e críticas ao documento, cuja nova versão deve ser apresentada pelo governo até o final de abril. O prazo inicial para a apresentação do novo texto era o dia 15 de abril. A polêmica gerada em cima das propostas, no entanto, foi um dos fatores que levou o MEC a adiar a nova apresentação. Segundo o secretário-executivo do ministério, Fernando Haddad, a segunda versão deve ser mais concisa e específica. Não se sabe, no entanto, que pontos o governo pretende reforçar e quais deixará de lado a partir de agora. O projeto segue então para a Casa Civil e para o Congresso, onde a conjuntura para a defesa do ensino superior público é extremamente desfavorável. O setor privado ocupa hoje espaços importantes na Comissão de Educação do Congresso e também no Conselho Nacional de Educação – que tem representação majoritária das mantenedoras do ensino particular e cuja revisão da composição estava prevista no programa do governo Lula. Como aconteceu com outros projetos de lei, a probabilidade de que, durante a tramitação, mudanças levem a um desvirtuamento da reforma é bastante grande.
As organizações e movimentos que apóiam o projeto do governo sabem deste risco, mas defendem fortemente que o MEC encaminhe o anteprojeto. Na semana passada, temendo justamente um recuo do governo por conta das pressões do setor privado – acostumado com o período de rédeas frouxas do então ministro Paulo Renato Souza, que agora se posiciona contra qualquer tipo de regulação do ensino –, União Nacional dos Estudantes (UNE), União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Confederação Nacional dos Trabalhadores nos Estabelecimentos de Ensino Privado (Contee), Federação de Sindicatos de Trabalhadores das Universidades Brasileiras (Fasubra) e Central Única dos Trabalhadores (CUT) realizaram o “Dia Nacional de Paralisação e Luta” em defesa da reforma universitária. Na quarta-feira (6), atos e protestos ganharam as ruas das principais capitais, numa tentativa de reafirmação do caráter público da universidade brasileira que, dizem, é o fundamental do projeto.
“Apesar do governo ter aprovado o ProUni com isenção para as universidades com fins lucrativos, o anteprojeto não sinaliza para a desobrigação do Estado. Não concordamos com essa idéia de que a reforma vai diminuir o papel do Estado. O projeto traz avanços, como a meta de termos 40% das vagas do ensino superior nas universidades públicas em 2011. Hoje, são pouco mais de 20% e a tendência é piorar, porque a abertura desenfreada de cursos continua”, aponta Gustavo Petta, presidente da UNE. “Não é o projeto que a UNE apresentaria, mas são mudanças que precisam acontecer. Tememos que o governo Lula se intimide diante das pressões, porque, num momento de polarização, barrar o envio do projeto é agir como os barões do ensino”, acredita.
A União Nacional dos Estudantes acredita que o anteprojeto do governo abre espaço para uma transição de paradigmas na universidade: das idéias de flexibilização, produtividade e redução de custos – marcas do governo FHC – para o fortalecimento do ensino público. “Estamos diante do grande desafio de nossa geração e não temos o direito de vacilar por conta de disputas menores. É chegada a hora de superar o que nos separa e cerrar fileiras para combater a reação conservadora”, diz um documento da entidade aprovado recentemente no 54º Conselho Nacional de Entidades Gerais (Coneg), realizado no final de março.
Entre as reivindicações dos estudantes estão a gestão democrática com eleição direta para reitor, liberdade de organização sindical nas privadas, ampliação do financiamento com sub-vinculação de 75% das verbas federais da Educação para as universidades, expansão do número de vagas nas universidades públicas, reserva de vagas para estudantes egressos da escola pública com cotas raciais, autonomia didática, acadêmica e de gestão e regulação do ensino pago. Eles também exigem uma elevação do percentual de gastos públicos em relação ao PIB aplicados em educação para atingir o mínimo de 7%, a derrubada dos vetos ao Plano Nacional de Educação, a troca dos títulos da dívida externa por investimentos em educação e a construção de um Plano Nacional de Assistência Estudantil.
“Precisamos reativar e ampliar os restaurantes universitários, construir novas moradias, garantir creches para mães estudantes. Não adianta implementarmos um programa de cotas se isso não for acompanhado por medidas que garantam a manutenção do estudante na universidade”, lembra Petta. Por enquanto, a proposta do MEC para financiar a assistência estudantil é criar uma loteria específica para o setor, assim como já vem sendo feito com o programa de financiamento estudantil (Fies).
Cavalo de Tróia
Apesar desta lista de reivindicações, que as entidades esperam conseguir inserir no anteprojeto antes da ida do documento para o Congresso, trata-se de uma parcela significativa do setor universitário que segue ao lado do governo nesta linha de reforma. São cerca de 230 movimentos e organizações que participaram dos encontros promovidos pelo MEC para a elaboração do anteprojeto. Do outro lado, outra parcela, também representativa – formada por diretórios acadêmicos, executivas de curso, entidades acadêmicas de base, conselhos universitários e pesquisadores em educação –, que vê na atual proposta do governo um marco normativo para fortalecer o setor privado por meio de isenções fiscais, pelo baixo perfil para a classificação das instituições como universidades e centros universitários e pela abertura do mercado ao capital estrangeiro. As entidades temem que, no parlamento, o lobby do ensino privado liberalize ainda mais o setor. E que os artigos que constituem o projeto se transformem num tipo de cavalo de Tróia a serviço dos empresários da educação.
Foi isso o que aconteceu, por exemplo, com o projeto do ProUni. O programa inicial, lançado pelo MEC no ano passado, previa a abertura de 400 mil vagas gratuitas nas instituições privadas, em troca de isenções fiscais que totalizam cerca de R$ 2,5 bilhões por ano. Cada universidade particular participante ofereceria como contrapartida 20% de suas vagas. Por conta das pressões, o governo reduziu então as bolsas integrais para 10% e, no Congresso, elas se resumiram a 4,25% das vagas, que correspondem a 100 mil bolsas integrais. O mesmo – ou seja, a queda das regulamentações ao funcionamento do ensino privado previstas na reforma – corre o risco de acontecer durante a tramitação do projeto.
“O ponto central, que é a regulamentação do conceito de universidade, está completamente escancarado no projeto. Os requisitos exigidos ao setor privado são muito frágeis e débeis”, afirma Roberto Leher, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, dirigente do Andes (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior) e coordenador do grupo de trabalho Universidade e Sociedade do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso). “Para uma instituição ser considerada universidade, o anteprojeto determina o oferecimento de 12 cursos de graduação em três campos de saber e três cursos de mestrado e um de doutorado. Contudo, as universidades especializadas podem ter apenas oito cursos de graduação – seis podem ser em um único campo – e apenas um curso de mestrado ou doutorado. Ora toda universidade privada hoje é especializada, principalmente em ciências humanas. Todas cumprem essa exigência hoje. Se não, basta pegar um professor aposentado de uma universidade pública, com aposentadoria defasada, e ele monta um mestrado sem dificuldades”, pondera Leher.
A elas, portanto, estaria consolidado o direito de uso do status de universidade, desfrutando da autonomia associada na defesa de seus interesses particulares. O deslocamento do conceito de autonomia, estabelecido na Constituição, para o âmbito do anteprojeto é outro ponto criticado. Enquanto nas instituições públicas o estatuto, instrumento que normatiza as condições da autonomia da universidade, precisa ser aprovado pelo Conselho Nacional de Educação e pelo próprio ministro, no caso das privadas basta que ele seja registrado. O governo responde a esta crítica afirmando que o controle social, neste caso, seria feito pelos Conselhos Comunitários Sociais, previstos no anteprojeto. No entanto, tratam-se de conselhos consultivos e alvos já declarados do setor privado. O documento “Considerações e Recomendações sobre a Versão Preliminar do Anteprojeto de Lei da Reforma da Educação Superior”, elaborado pelo Fórum Nacional da Livre Iniciativa da Educação, que reúne as entidades empresariais relevantes do ensino superior, afirma que os Conselhos Comunitários “tornam possível a substituição do mérito acadêmico e da competência administrativa por ações de cunho sindical, corporativista ou vinculadas a forças estranhas ao meio acadêmico. Trata-se, pois, de medida inadequada e que fere o princípio constitucional da autonomia. É necessário lembrar ainda que a gestão democrática do ensino, na forma que a Constituição Federal estabelece, é obrigatória apenas nas instituições públicas”.
Está aí, por exemplo, o indicativo de como agirá o lobby privatista das universidades para derrubar uma das bandeiras históricas e mais caras à universidade. O anteprojeto prevê a existência de eleição direta pela comunidade para a escolha de um pró-reitor com critérios elaborados pelo Conselho Superior, em geral constituído pela direção da instituição. A Constituição, no entanto, diz que o ensino é livre à iniciativa privada, desde que observadas as normas gerais da educação nacional, a autorização e a avaliação de qualidade pelo poder público. “Desse modo, é de se prever que os empresários irão atuar no sentido de derrubar os frágeis artigos relativos a gestão democrática das privadas”, aponta Leher. “Não é preciso fazer nenhum exercício de futurologia. É só examinar tudo o que aconteceu nos outros projetos de lei. Os que têm algum traço de defesa do público e da cidadania sempre são liquidados no Parlamento, onde sabermos que a correlação de forças é péssima”, lembra.
Fonte: Agência Carta Maior