Em meio à unanimidade aparentemente monolítica suscitada pela morte do papa João Paulo II, a França – terra das polêmicas – discute com paixão a decisão do presidente Jacques Chirac (da UMP, direitista), de decretar 24 horas de luto oficial na sexta-feira, pela morte do pontífice, com as bandeiras tricolores hasteadas a meio-pau. Em nome do Estado laico, bandeira cara às tradições republicanas francesas, a oposição de esquerda questiona a medida.
O primeiro protesto veio de Christophe Girard, adjunto (o equivalente a secretário) de Cultura da Prefeitura de Paris e pertencente aos Verdes. Desde o domingo ele se declarou “chocado” com “a utilização do símbolo nacional” com sentido religioso. “Tenho o maior respeito pelas comunidades religiosas, mas trata-se da laicidade, da necessária neutralidade do Estado, de sua separação da Igreja”, afirmou Girard, que gosta de lembrar que é “católico batisado”.
Chefe da Igreja ou chefe de Estado?
O primeiro ministro Jean-Pierre Raffarin interveio no debate nesta quinta-feira. “O governo se associa solenemente à homenagem rendida ao papa João Paulo II”. O argumento governista é que não se tratava de imiscuir o Estado francês em questões de religião, mas de uma homenagem a um chefe de Estado: o papa, além de príncipe da Igreja Católica no mundo, é o monarca do Estado do Vaticano, encravado na cidade de Roma, com 0,4 km2 e 740 habitantes. Mas Girard lembrou que a bandeira não foi hasteada a meio-pau quando da morte do rei Hassan II do Marrocos, apesar das estreitas relações franco-marroquinas.
Logo o tema chegou à grande imprensa e outras vozes se multiplicaram, concordando com o secretário parisiense, vindas de todo o espectro da esquerda, que no vocabulário político francês abrange o Partido Socialista, o Comunista, os Verdes, os trotskistas. A controvérsia egrossou face a medidas como a da Prefeitura de Marselha (segunda cidade do país, administrada pela direita), de liberar os seus funcionários 16 mil na sexta-feira para que possam assistir às exéquias do papa. E com a decisão do ministro do Interior, Dominique de Villepin, de “convidar” os prefeitos a assistirem missas “em memória de Sua Santidade”.
O deputado do PS Jean-Luc Mélenchon chamou as autoridades a “darem prova de uma laicidade sem sombra e sem meias-tintas”. Bertrand Delanoë, prefeito de Paris (também do PS), não compareceu à missa rezada pelo arcebispo Jean Vingt-Trois na célebre catedral de Norte Dame. Arnaud Montebourg, outro parlamentar socialista, chamou os prefeitos a “não se submeterem” às injunções do governo central.
Dois sindicatos nacionais de professores – a FSU e a Unsa – somaram-se aos protestos, argumentando que “tais práticas podem sinalizar que os princípios do Estado laico podem ter uma geografia variável”. A alusão aqui é à recente lei francesa – aprovada com apoio do governo – que proibiu o uso dos véus muçulmanos e outros símbolos religiosos ostensivos nas escolas públicas, justamente com o argumento da laicidade.
Prefeitos mantém bandeira no alto
O prefeito comunista de Aniane decidiu que, em sua cidadezinha de 2.600 habitantes, a bandeira não seria hasteada a meio-pau, “em nome da laicidade”. O prefeito e deputado comunista de Venissieux, André Guerin, fez o mesmo invocando a lei de 1905 que separa a Igreja do Estado. E o deputado do PS Arnaud Montebourg quer que o exemplo se propague: “Eu convido os prefeitos, os responsáveis públicos, a não se submeterem a uma instrução evidentemente mal inspirada e completamente desconectada do respeito às exigências de nossa Constituição”.
Mesmo o presidente da UDF, partido depositário da tradição democrata-cristã francesa e pertencente à base do governo de direita, guardou distância das homenagens chapa-branca. Seu presidente, François Bayrou, foi taxativo: “Eu certamente não tomaria uma tal decisão, ela não corresponde à distinção que é preciso fazer entre convicções espirituais e escolhas políticas e nacionais”.
Conquista da Revolução Francesa
Para se entender a extensão e profundidade da polêmica é preciso situá-la dentro da trajetória da França. O compromisso com o Estado laico e a separação Igreja/Estado são conquistas da Revolução Francesa de 1989. Napoleão manteve-as no fundamental e desde então elas se entranharam no sentimento nacional. Na virada para o século 20, o famoso Caso Freyfus, em que o sentimento laico enfrentou e venceu o catolicismo conservador e anti-semita, consolidou essa visão. Como fruto direto do Caso Dreyfus, em 1905 foi aprovada a lei separando a Igreja do Estado. E a atual Constituição Francesa proclama logo em seu artigo 2 que “a França é uma República indivisível, laica, democrática e social”.
Nestas circunstâncias, o zelo francês pelo laicismo é bem mais aceso que em outros países. Não por acaso, a questão suscita ali uma controvérsia tão intensa, enquanto no Brasil ninguém lembrou de questionar o luto oficial de sete dias pela morte do papa, nem em Cuba o mais modesto luto oficial de três dias.
Fonte: Diário Vermelho (Por Bernardo Joffily*, com informações de agências)