Mesmo com grande dificuldade devido ao calor que fazia em Porto Alegre no período do Fórum Social Mundial 2005, cerca de 5 mil pessoas que participaram da quinta edição do evento assistiram, no dia 29, à conferência “Quixotes hoje: utopia e política”. O painel, realizado no auditório Araújo Viana, no Parque da Redenção, reuniu grandes personalidades da esquerda e da literatura, como o escritor português prêmio Nobel de literatura, José Saramago; o jornalista e escritor uruguaio, Eduardo Galeano; o ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, Luiz Dulci; o presidente emérito da agência IPS e membro do Comitê Internacional do Fórum Social Mundial, Roberto Sávio; o ex-diretor geral da Unesco e atual presidente da Fundação de Cultura e Paz e da rede World Forum of Civil Society Network (Rede da Sociedade Civil do Fórum Mundial) ou Ubuntu, Federico Mayor Zaragoza; e o presidente do Media Watch Global (Observatório Mundial da Mídia) e diretor de redação do jornal francês Le Monde Diplomatique, Ignácio Ramonet.
A conferência foi bastante aplaudida e teve como principais estrelas do painel José Saramago (Ensaio sobre a cegueira) e Eduardo Galeano (As veias abertas da América Latina). Depois do debate, os dois escritores concederam uma entrevista coletiva aos jornalistas que cobriram o FSM. Bastante disputada, a coletiva durou cerca de 45 minutos, oportunidade em que Saramago e Galeano responderam às perguntas sobre diversos temas polêmicos. A equipe de jornalismo da Fenajufe esteve na coletiva. Confira abaixo uma parte da entrevista.
1- Amanhã [dia 30 de janeiro, seguinte ao dia da entrevista coletiva] acontecerão as eleições presidenciais no Iraque. Vocês acreditam que essas eleições mudarão a situação do país?
José Saramago: Eu não sou um especialista em política ou estratégia do Oriento Médio. Não tenho, enfim, o que se costuma chamar de informação privilegiada. O que irá se passar depois das eleições? Não dá pra eu ter nenhuma idéia. Fala-se da possibilidade de uma guerra civil entre os sunitas com os xiitas. Já se fala na necessidade de dramatizar algo que já é suficientemente dramático. Todos temos acordo, creio eu, que essa guerra é absolutamente criminosa. Justificá-la com uma espécie de sonho democrático, entre aspas, que o senhor Bush a concebeu numa revolução divina. Ele teve que destravar essa missão, ou seja, democratizar o mundo, mas é preciso saber de que democracia se trata. E sabemos por experiência própria, e a América Latina sabe bem, que quando não convém aos Estados Unidos a democracia, eles optam pelas ditaduras. Então, o problema no Oriente Médio, evidentemente, é o petróleo. Então não se trata de democratizar um outro lugar qualquer, trata-se de democratizar um país rico em petróleo. Agora há essa idéia também de decidir quantos países estão presentes nessa luta, e sabemos que isso é uma ameaça para o mundo inteiro. Isto significa já, então, que o Pentágono tem uma lista de países a democratizar, outra vez entre aspas. Por outro lado, não me parece que os Estados Unidos estejam sempre preocupados pela democratização de outros países, uma vez que são unidos, aliados e cúmplices de outros países que de democráticos não têm nada. Então é trágica a comédia de sempre. Portanto, o que acontecerá a partir das eleições no Iraque, não sabemos.
Eduardo Galeano: Embora concorde com parte do que José acaba de dizer, eu também gostaria de explicar que me parece óbvio que uma eleição feita num país submetido à ocupação estrangeira, a uma invasão estrangeira, não tem nenhuma validez, não tem credibilidade nenhuma. A segunda coisa é dizer é que a experiência no Iraque indica como mentem aqueles que dizem que a mentira tem pernas curtas. Mente quem diz que a mentira tem pernas curtas. A mentira tem pernas longuíssimas. Tão longas são as pernas das mentiras que elas correm mais velozmente que as desmentiras dos mentirosos. Porque quando os invasores admitiram que Sadam Husseim não tinha “p nenhuma” a ver com a história das Torres Gêmeas em Nova Iorque, e que ele não tinha arma de destruição massiva, a notícia demorou a chegar. Do mesmo jeito a opinião pública continua acreditando na mentira que ela recebeu antes. O que explica a continuação da tragédia iraquiana.
2 – Vocês acreditam na tese de que o capitalismo e a democracia estão falidos? E se realmente estão falidos, qual seriam a alternativas a serem construídas? E qual a avaliação de vocês sobre o governo Lula?
Saramago: Essa afirmação de que o capitalismo está falido, eu tenho a impressão de que desde quando estavam crescendo meus dentes já se dizia isso. Digamos que o capitalismo esteja falido, e parece que está falido como vocação própria, porque não poderia deixar de destruir a si mesmo. Então praticamente só tínhamos que sentar em baixo de uma macieira para que o fruto amadurecesse e caísse em nossas mãos. Fora ao longo de todo esse tempo, acabou por se mostrar que o capitalismo não está falido. Isso não significa que não haja crise. É muito difícil pensar que o capitalismo está falido em uma situação que pela primeira vez na história do mundo há um domínio global que está exatamente nas mãos do capitalismo. Digamos que um domínio que se alarga e que se consolida todos os dias. O capitalismo é suscetível de ser derrotado, isso como todas as coisas do mundo. Simplesmente é necessário encontrar as forças preparadas para derrotar o capitalismo. O que é que se vêm depois? Bom, até agora tem se conscientizado que a alternativa ao capitalismo é o socialismo, agora, é preciso se ver o estado em que se encontram os ideais socialistas hoje. Quando se vê que muitos partidos socialistas são praticamente partidos da direita, ou se não quiser dizer direita, partidos de centro, digamos que, curiosamente a direita diz que não é direita e que é centro. Isso porque se os socialistas querem chegar ao poder, têm que se converter aos partidos de centro. Portanto, quando hoje [29/01] aqui se falou na necessidade de se rever os conceitos políticos que manejamos ao longo da nossa vida, então é exatamente isso, definir o que é realmente esquerda […]. Devemos ver o amanhã não para definir o hoje, mas trabalhar sobre essa matéria e encontrar uma expressão de caráter efetivamente socialista que seja capaz de enfrentar o senhor do mundo, nada mais nada menos que os autores e os editores da globalização.
A minha opinião sobre o governo Lula é numa frase muito curta: o Lula está fazendo aquilo que pode e isso não é mau. Mau seria se estivesse fazendo aquilo que não deveria fazer. Cabe a vocês, brasileiros, que estão aqui e que assistem todo dia às palavras políticas do governo Lula, saber se há prejuízos que se expõem no mundo, que está, como nós sabemos, governado para instituições financeiras e para o grande capital, para grande indústria, indústria alimentícia, do petróleo, e todas essas coisas. É nessa realidade que os governos vivem, mesmo quando têm as melhores intenções do mundo. Portanto eu digo, se está fazendo aquilo que pode, não é mau, mas se está fazendo alguma coisa que não deveria fazer, aí só vocês podem ser os juízes, uma vez que sofrem. É uma eleição que fez nascerem muitas expectativas e esse mundo – o mundo que se idealiza – foi uma delas. De qualquer forma, a eleição do Lula despertou em todos expectativa, não só no Brasil, não só na América Latina, mas em todo o mundo. Expectativas essas que correspondiam às promessas eleitorais feitas. Então caímos mais uma vez na mesma fatalidade: as promessas não se cumprem. Depois, há uma quantidade de boas razões, ou mas razões, ou razões que não são razões, para explicar porquê que não se cumprem. Normalmente agüenta-se o choque e continua-se a viver. Mas pode acontecer que aqueles que esperavam que as expectativas fossem cumpridas protestem. Eu vi ontem [28/01] na imprensa que o presidente Lula disse que os protestos feitos foram de filhos do PT, que se separaram e que quando crescerem voltarão à casa mãe. E eu diria ao presidente Lula, que o paternalismo é uma atitude que não convêm à ninguém.
Galeano: Eu sou muito cuidadoso sobre esse tipo de tema. Para mim seria melhor escutar antes de falar. Mas, estou basicamente de acordo com o que Saramago disse, e adiantaria mais uma coisa: que seja qual for a situação de Lula, e a distância real aberta das promessas formuladas, e a qualidade feita, Lula está enfrentando, o governo do PT no Brasil está enfrentando, um desafio muito semelhante aos desafios que enfrentam diversos governos latino-americanos que têm vontade de mudar, e que têm gerado expectativa de mudança entre as gerações novas. Então, essa responsabilidade é imensa, porque a pesquisa no final revela que a situação sobre toda a juventude é patética, que a juventude não acredita na democracia. Uma proporção altíssima de jovens que não acreditam na democracia, e não têm culpa de não acreditar na democracia. A democracia, tal qual é, não tem feito muito para ser acreditada, e os políticos profissionais levam muitos anos fazendo com que o poder faça muito diferente, às vezes até contrário, às coisas prometidas nas campanhas eleitorais. Então, tem uma razão lógica para que os jovens digam: Isso é um circo, não acredito nisso. Essa é uma responsabilidade enorme da esquerda nessa hora, da esquerda que está no poder, ou perto do poder em alguns países. O meu mestre sempre me dizia: “Eduardo, todos os pecados têm redenção, exceto o contra a esperança. Esse não tem redenção”. E aí está o desafio que a esquerda enfrenta agora, num mundo em que a democracia está em crise, e a fé na democracia está em crise. A ela, à esquerda, está a responsabilidade de recuperar a verdadeira crença na democracia.
3 – Os senhores não consideram que a política do governo Lula acaba se contrapondo ao que vocês defenderam hoje [29/01] na conferência? Inclusive no que se refere à anulação do pagamento da dívida externa?
Saramago: Seria um milagre que as propostas ditas na conferência, que não são propostas formais, que não se apresentaram como propostas do Fórum [Fórum Social Mundial 2005] – o Ignácio Ramonet falou que eram propostas concensuais – que se coincidisse totalmente daquilo que politicamente está fazendo o governo Lula. Não foi pensando no governo do Lula que essas propostas foram feitas, mas pensando na situação do mundo. Eu diria que essas propostas não estão realizadas em parte nenhuma do mundo e, portanto, são propostas que têm um peso próprio, no sentido de que se quiserem tomá-las a sério, quanto no governo Lula ou no governo de qualquer outro país, porque os problemas postos ali não são específicos do povo brasileiro, mas específicos de toda a humanidade, os quais estamos vivendo nesse momento. Então, não importa agora. O que me parece é que tudo o que se passa tem como objetivo o governo do presidente Lula. Não tem. Isso não é um encontro pra discutir problemas locais, mas para considerar, no conjunto do mundo, o que efetivamente o Fórum Social Mundial tem para propor para resolver os problemas do mundo. Se algum desses problemas do mundo são também problemas do Brasil, o Brasil sente que essas propostas são justas.
4- Como as lideranças populares podem contribuir para o processo de construção de um novo mundo? Até na proposta do FSM?
Galeano: O Fórum não pode ser muito melhor que o mundo que é hoje. O Fórum conhece as limitações do mundo real. Mas, eu tenho a esperança de que essas vozes raramente escutadas possam encontrar um lugar para se expressar, para participar dentro do espaço do FSM, que nasceu não para ser restrito, mas que nasceu restrito pelas diferenças sociais. Os passos são conquistados aos poucos, e as organizações populares é que vão conquistando esse espaço.
5- Galeano, quais são as conquistas do Fórum? Quero que faça um balanço dessas cinco edições.
Galeano: Para mim o Fórum foi, e continua sendo, uma luta pela justiça. O Fórum foi capaz de mostrar que pessoas e movimentos, de lugares diferentes, se encontrassem mutuamente, achassem um lugar em que foi possível trocar experiências e começar a criação de redes solidárias novas.
Fonte: Fenajufe (Leonor Costa e Vanessa Galassi)