Por Marcela Cornelli
Leia abaixo a íntegra da deliberação do Conselho Pleno da ANDIFES, em reunião realizada em Brasília no dia 18/3, onde a instituição repudia a compra de vagas no setor privado:
“Pela expansão da educação superior
Pela valorização da educação superior como bem público
A Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) reafirma sua Proposta de Expansão e Modernização do Sistema Público Federal de Educação Superior, apresentada em agosto de 2003 ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como forma de atendimento da legítima demanda da sociedade pela ampliação qualificada das oportunidades de acesso à educação superior, e manifesta-se contrária à implementação do programa de “compra de vagas” anunciado pelo Ministério da Educação:
1. Em todas as partes do mundo, a riqueza econômica e cultural das nações depende do valor de sua educação superior. A educação superior é bem público, não está a serviço das elites econômicas, não beneficia somente aquele que obtém um diploma. Por isso, ao formar professores, pesquisadores e profissionais das mais diversas áreas, ao produzir e divulgar o conhecimento, ao abrigar e desenvolver as ciências, as tecnologias, as humanidades e as artes, ao contribuir para o incremento das riquezas materiais e das identidades culturais, a educação superior revela-se absolutamente estratégica para a independência econômica e cultural das nações.
2. Hoje, mais do que nunca, a educação superior é estratégica para um país como o Brasil, que precisa crescer e gerar empregos, para uma nação que quer afirmar a sua soberania e identidade tornando-se mais justa e menos desigual.
3. O sistema público de educação superior brasileiro é obra republicana, não pertence a governos ou a grupos – a sociedade brasileira é portadora do seu destino. Nos últimos anos, apesar da diminuição de nossos recursos para custeio e investimento, apesar da redução dos nossos quadros docentes e técnico-administrativos, levamos adiante nossa missão com firmeza e responsabilidade.
Como demonstram todos os indicadores, somos referência de qualidade, no âmbito do ensino e da pesquisa, para o conjunto da educação superior brasileira. Mais do que isso, enfrentando discursos e práticas que questionam a presença do Estado em quase toda e qualquer esfera da vida social, contrariando opiniões que, por princípio, duvidam da capacidade dos servidores públicos, crescemos em todas as direções. Formamos um número maior de estudantes de graduação, duplicamos a oferta de vagas em nossos cursos noturnos. Fizemos isso, e muito mais, sem abrir mão de nosso compromisso com a qualidade.
4. Entretanto, hoje, apesar dos nossos esforços, apesar do crescimento da oferta de matrículas por parte do setor privado (instituições confessionais, comunitárias, empresariais e outros provedores), apenas 9% da população brasileira com idade entre 18 e 24 anos tem acesso à educação superior, quando sabemos que essa taxa passa de 50% em alguns países. Portanto, o Brasil precisa ampliar, e muito, as oportunidades de acesso à educação superior.
5. Alguns mitos sobre a educação pública superior tem sido derrubados. Como mostram diferentes analistas e pesquisadores, o custo para a formação de um estudante por nossas instituições não é maior do que o praticado pelos estabelecimentos do setor privado. Como mostram os mesmos estudos, nossas instituições, ao contrário de abrigar “estudantes ricos” ou “privilegiados”, de fato representam a única possibilidade de acesso à educação superior e de formação qualificada para milhões de brasileiros. Porém, se já realizamos muito, queremos e podemos fazer muito mais. Por isso, no dia 5 de agosto de 2003, nós, dirigentes das 54 instituições federais de ensino superior, apresentamos ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, uma proposta de expansão e modernização do sistema que, entre outras metas, aponta para a duplicação do número de nossos estudantes de graduação. A íntegra desta proposta – até hoje não respondida pelo governo – foi amplamente divulgada junto à opinião pública e tem sido debatida pela ANDIFES, dentro e fora das universidades, com ministros e outras autoridades governamentais, com parlamentares, sindicatos, associações profissionais e empresarias e com outras tantas entidades.
6. Sabemos que o Brasil passa por dificuldades, sabemos que, nos últimos anos, o Estado brasileiro perdeu capacidade de investimento, reconhecemos que o atual governo não é responsável por esta situação – mas não aceitamos que isto justifique o prolongamento de políticas pautadas pela desvalorização da instituição educacional pública e de seus servidores, que têm resultado na crescente desqualificação e mercantilização de um bem público absolutamente estratégico para o desenvolvimento do nosso país e para a promoção da inclusão social duradoura. Sem dúvida, faz-se absolutamente necessária a expansão da educação superior, não para favorecer esta ou aquela instituição, este ou aquele setor, mas para ampliar os horizontes de milhões de brasileiros, para oferecer-lhes a oportunidade de contribuir de maneira ainda mais pertinente e qualificada para o desenvolvimento do país – esta é nossa convicção.
Entretanto, também é nossa convicção de que a melhor, a mais eficiente e eficaz, a mais generosa, a mais pertinente e promissora ação que se pode empreender hoje no Brasil nessa direção, é o investimento na instituição de educação superior republicana – pública, laica e gratuita.
7. O Estado brasileiro despende hoje mais recursos com o Programa de Financiamento Estudantil (FIES) do que com o custeio de suas 54 instituições federais de ensino superior. Por outro lado, lembramos que há anos nossa legislação obriga as instituições filantrópicas a destinar 20% de suas vagas a estudantes carentes. Esta legislação está sendo obedecida? Em caso afirmativo, a sociedade conhece os critérios de distribuição destas vagas? A qualidade dos cursos oferecidos por estas instituições corresponde ao investimento público realizado? Os cursos das instituições públicas são permanentemente avaliados, pelos organismos competentes e pela sociedade. A gestão de nossos recursos financeiros é igualmente submetida, regularmente, ao controle da sociedade, do Tribunal de Contas da União, do Ministério Público e de outros órgãos. Enquanto isso, o destino dos recursos que subsidiam instituições privadas, através da renúncia fiscal e outros meios, é pouco transparente para a sociedade, que quase nada sabe sobre o emprego de um dinheiro que, investido nas instituições públicas, poderia impulsionar nossos programas de expansão e modernização.
Enfim, de maneira pouco coerente, os governos têm alegado a escassez de recursos para justificar a redução dos investimentos nas instituições públicas, porém, ao mesmo tempo, praticam a renúncia fiscal em nome da expansão do acesso, que, em muitos casos, realiza-se com o sacrifício da qualidade e sem o necessário controle da sociedade.
8. Os excluídos da educação superior brasileira não querem apenas uma oportunidade de acesso à graduação: o que de fato querem, é a igualdade de oportunidade para a obtenção de formação superior qualificada. E esta condição, como mostram os números e a experiência histórica, é oferecida pelo sistema público de educação superior. O que garante a inclusão social duradoura não é a simples (e absolutamente necessária) expansão da oferta de vagas, mas a qualidade e a pertinência da formação. O poder público não pode patrocinar a oferta de oportunidades desiguais de acesso a educação superior. Aos pobres, negros, pardos, índios e a tantos outros setores excluídos da educação superior, deve-se oferecer oportunidade igual de formação qualificada, o que se faz através do fortalecimento da educação pública e da ampliação da oportunidade de acesso republicano – “pela porta da frente” – à formação superior.
9. Nada sabemos, oficialmente, sobre o programa “Universidade para Todos”.
Contudo, a julgar pelo debate que transita na opinião pública, manifestamos nossa contrariedade à proposta de compra de vagas ociosas no setor privado, chamando a atenção das comunidades acadêmicas, da sociedade e do governo, para o grave significado de uma iniciativa que, no contexto atual, certamente se fará em detrimento do fortalecimento das instituições públicas de ensino superior, e que – e isto nos parece ainda mais grave – promete ser implementada por medida provisória. Por sua natureza, este não é um assunto para decisões apressadas. Lembramos à comunidade acadêmica e à sociedade que esta proposta, ainda não conhecida na sua forma final, não consta do programa apresentado à nação pelo atual governo.
10. Finalmente, fazemos um chamamento a todos, para que, dentro e fora das universidades, participemos de maneira ativa e serena do debate em curso sobre os rumos da educação superior no Brasil – afinal, como já dissemos e aqui reafirmamos, a sociedade é a portadora do destino da educação pública.
Deliberação do Conselho Pleno da ANDIFES, em reunião realizada em Brasília, no dia 18 de março de 2004”.
Fonte: ANDES