INDECENTE È O LUCRO DOS BANCOS: trabalho e loucura!, artigo de Raquel Moysés

Indecente é o lucro dos bancos!
Por Raquel Moysés – jornalista

Quando os bancários param, a sociedade inteira sente, e talvez, só então, alguns percebam o quanto eles fazem falta para fazer andar o sistema. O mesmo sistema que explora trabalhadores em todo o mundo e não deixa a eles outra escolha senão entrar em greve, como fizeram agora os bancários brasileiros. É  em  dias de paralisação que os mais atentos se dão conta de que  eles  já foram muitos, muitos mais: passavam de 800 mil em  todo o país.

Não é por acaso que, nesta greve que iniciou em setembro e avançou outubro afora, os bancários tenham denunciado exatamente isso: a superexploração, a opressão e o assédio moral a que estão submetidos os que continuam empregados. A Pesquisa de Emprego Bancário, elaborada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf-CUT) e o Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas Socioeconômicas (Dieese,) com base nos dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do Ministério do Trabalho, revela  que, em junho de 2011, o total de funcionários dos cinco maiores bancos do país – Banco do Brasil, Itaú, Bradesco, Caixa Econômica Federal e Santander – atingiu 466.053 trabalhadores.

Mas, se sistema financeiro ganhou força e registra lucros astronômicos, nutrido também  por polpudas políticas oficiais,  os  bancários  minguaram em número e  em forças para suportar  o sistema de metas odiosas e abusivas que lhes foi imposto,  com salários rebaixados, metas abusivas, terceirização, insegurança  e benefícios cada vez mais reduzidos.

Notícia publicada pelo Sindicato dos Empregados em Estabelecimentos Bancários de Florianópolis e Região informa que,  apesar de terem criado   11.978 empregos,  no primeiro semestre de 2011, os bancos demitiram mais  e reforçaram a prática de usar a rotatividade para reduzir  o salário dos bancários e aumentar os lucros. Os números apurados pela já  Pesquisa de Emprego Bancário revelam que houve, no referido período,   18.559 desligamentos. Desde 2009, quando a Contraf-CUT  e o Dieese iniciaram  o levantamento, registraram-se 82.001 desligamentos nos bancos.

Nos mesmos primeiros seis meses de 2011,  a remuneração média dos bancários admitidos também despencou para  R$ 2.497,79, valor 38,39% menor que a da média dos desligados, de R$ 4.054,14. “Este número descabido de desligamentos comprova a estratégia dos bancos de utilizar a rotatividade para reduzir gastos com a folha de pagamento e aumentar ainda mais os seus lucros estrondosos, que superaram R$ 23 bilhões no primeiro semestre”,  firma Carlos Alberto Cordeiro da Silva.  Presidente da Contraf-CUT, ele afirma que “a ameaça de demissão que  paira sobre as cabeças dos bancários  serve como pressão para o cumprimento de metas abusivas e de combustível para o assédio moral.”


Metas, assédio e opressão

Há histórias entre os bancários brasileiros que provocam calafrios. Uma delas é contada por uma trabalhadora que prefere manter o anonimato, enquanto trata as feridas que lhe foram provocadas por 18 anos de trabalho que a adoeceram. Ela começou a trabalhar com apenas 17 anos em um banco privado e foi sempre considerada funcionária modelo. Destaque em produtividade, subiu rápido na carreira, chegando a ser considerada a melhor gerente de relacionamento do país.  Mas, esse empenho em produtividade, com altos índices de cumprimento de metas, logo anunciou seu preço: a funcionária padrão adoeceu,  passando a sofrer com depressão, crise de pânico e anorexia nervosa.

“Com 1,60m, eu pesava normalmente uns 50 kg. Quando adoeci, emagreci mais de 12kg,  chegando a ficar com  37.  Por causa da anorexia nervosa, fui internada 12 vezes. Tremendo, cheguei a ficar 12 dias só tomando açúcar com água gelada,  pois não conseguia engolir mais nada, nada parava no estômago.  Corria risco de morrer por causa de um resfriado, tamanha era a fraqueza do meu corpo”.

Hoje, com 35 anos, ainda fazendo psicoterapia e tratamento com remédios pesados, a bancária já pode falar do que lhe aconteceu: “A gente não fica doente de um dia para o outro. Só hoje me dou conta de que fui ao meu limite máximo, físico, mental e emocional antes de cair gravemente doente”. Ela lembra que um dia, no início dos anos 2000, descobriu que estava com fibromialgia, pois fora tomada por dores crônicas e  generalizadas. Daí, foi um desencadear-se de distúrbios, até ser derrubada pela anorexia nervosa. Esse distúrbio, resultante de  uma preocupação exagerada com o peso corporal, pode provocar problemas psiquiátricos graves.

“Nunca sofri advertência, nunca houve nada que me desabonasse no banco. Mas a verdade é que, para responder às exigências cada vez maiores, fui adoecendo, até que,  por reconhecido ‘acidente de trabalho’ pelo INSS, entrei em licença para tratamento. A minha doença está relacionada exclusivamente à situação que vivia no banco, ao assédio que sofria com as contínuas cobranças. Mas, a lavagem cerebral que fazem com a gente é tão grande, que  no início  relutei a aceitar que não devia ir ao trabalho para poder me tratar e me curar. De manhã,  acordava, me arrumava e dizia para minha mãe que precisava ir para a agência, que não podia faltar ao trabalho.”

A funcionária padrão foi logo esquecida. Nos três anos em que se afastou para tratar da saúde, ficou sem qualquer contato com as pessoas com quem convivia no trabalho. “Antes, a comunicação era obsessiva, para cobrar metas e produção. Eram reuniões, teleconferências, telefonemas, e-mails, etc. Depois que fiquei afastada do banco pela doença, o que mais me surpreendeu é que  nunca fui procurada por nenhum colega e nenhum chefe para saberem se eu estava viva ou morta”.

Até agora, a bancária não teve alta de nenhum dos médicos que acompanham a sua situação de saúde, mas, pela perícia do INSS, foi considerada novamente apta para o trabalho. Ela voltou para o banco, mas, eleita para a diretoria do sindicato de sua categoria, está cumprindo o mandato de três anos. 
 

Foi no sindicato que a trabalhadora adoecida encontrou apoio durante o período de afastamento. “Quando voltei da primeira perícia com um ‘comunicado de decisão’ nas mãos, eu não sabia o que fazer com aquilo, na verdade nem conseguia parar em pé… Foi então que decidi procurar o sindicato e aí começa minha história com o meu sindicato. Aliás, minha história no sindicato só aconteceu por causa da minha história toda.”

A decisão de mudar de vida e assumir um papel no sindicato foi muito pensada. “Sei que após terminar o mandato vou ter apenas um ano de estabilidade no trabalho. Mas, pensei muito  e conversei bastante  com a minha família: na verdade, eu nunca tive estabilidade no banco e não é pela estabilidade momentânea  que eu  estou na agora na direção do sindicato. Estar hoje  no sindicato,  para mim,  significa superação, renascer, viver, dar uma outra dimensão à minha  vida. Quero ajudar outras pessoas que passam por situações   como a minha. Também tenho planos de voltar a estudar. Fazer mestrado e doutorado. Hoje começo a me sentir mais forte, mas ainda estou recuperando a minha autoestima, que ficou muito abalada com a doença…”

 

Loucura do trabalho

Uma imagem vale mais que mil palavras, diz o dito popular. É o que demonstra a campanha que desencadeou o SEEB de Florianópolis e Região para mostrar, diante das agências, tudo o que esses trabalhadores sofrem, o ano inteiro, em geral  calados.  Um corpo humano, nu, encolhido, aviltado, com o rosto afundado no chão, é uma das fotografias que ilustram cartazes e denuncia o a violência no trabalho expressa na frase: “Metas e assédio moral torturam os trabalhadores. Indecente é o lucro dos bancos”.

Para mostrar que o corpo nu do ser humano é natural e que a indecência é explorar esses corpos, tornados “força de trabalho”, até o seu limite,   os grevistas realizaram, no centro da capital catarinense um ato de protesto.  Emblematicamente, eles se desvestiram quase por completo, permanecendo apenas com suas roupas íntimas ao carregarem, em passeata, suas faixas-denúncia.

Hoje, mais de 60% dos afastamentos dos bancários do trabalho são relacionados a doenças psiquiátricas, diz Jozi  Fabiani Mello, diretora de saúde do sindicato da capital catarinense e região. “LER e DORT ainda causam muito adoecimento, mas os problemas de ordem mental aumentaram demais. E o mais grave é que muitas pessoas escondem que sofrem com doenças psíquicas, com medo de perder o emprego. Tomam remédios controlados e continuam trabalhando, o que é muito perigoso.” Hoje, diz a sindicalista –  que nos  dias de greve estava lendo o livro “A Loucura do Trabalho”, de  Christopher Dejours –  “o grande  problema  dos bancários é a gestão   imposta pelos bancos, que só visam lucro e pouco se importam com as condições de trabalho que adoecem as pessoas.”

 

Isso fica claro nas difíceis negociações desta greve. Como informa a Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro da CUT, em seu portal  na internet, os bancos insistem em recusar  as principais reivindicações sobre saúde e condições de trabalho apresentadas pelos bancários, inclusive as relacionadas às metas abusivas.
 

“Eles negam que haja metas abusivas nas instituições financeiras e questionam até mesmo a veracidade das pesquisas que apontam o aumento do número de adoecimentos na categoria em razão da pressão por aumento da produtividade. A postura dos bancos é de absoluto desdém em relação à saúde dos trabalhadores e às condições de trabalho. Eles estão sendo irresponsáveis com o sofrimento dos bancários dentro das dependências,” afirma Carlos Alberto Cordeiro da Silva, presidente da Contraf-CUT e um dos coordenadores do comando nacional de greve.

Patologia da solidão

No Brasil, ainda preocupam as dezenas de suicídios registrados entre trabalhadores em estabelecimentos bancários, diz a diretora de saúde do SEEB de Florianópolis e região. Jozi Fabiani cita dados de uma pesquisa da Universidade de Brasília (UnB), segundo a qual 181 bancários deram fim  à própria vida, no Brasil,  entre 1996 e 2005.  Uma média de um suicídio a cada 20 dias, conforme foi apurado pelo Ministério da Saúde e destacado em notícia  publicada pela  Contraf- CUT. O estudo, intitulado  “Patologia da Solidão: o suicídio de bancários no contexto da nova organização do trabalho”,  associa a taxa de suicídios e doenças do trabalho às transformações ocorridas no mercado financeiro a partir da década de 1990. No período, 430 mil bancários foram demitidos no país, segundo registra a Contraf-CUT. De acordo com o Dieese, a força de trabalho que era constituída de 815 mil bancários, ao final dos anos 80, caiu para cerca de 389 mil em meados de 2001.

 

Na dissertação, o autor da pesquisa, Marcelo Finazzi, também funcionário do Banco do Brasil, deixa claro que, entre as causas que podem levar um  trabalhador a gestos extremos,  estão as pressões para o cumprimento de metas, a falta de funcionários para muitas tarefas, o assédio moral,  as perseguições gratuitas, o  medo do desemprego e de retaliações. Tudo isso, diz Finazzi, é também responsável pelo  sofrimento que pode  até desencadear atitudes extremas,  como o suicídio. Segundo texto publicado no portal da UnB, um estudo, encomendado por entidades de classe dos bancários em 2006, demonstrou que aproximadamente 18 mil profissionais do país sofriam, à época, ideação suicida (vontade de tirar a própria vida).

Em entrevista ao Instituto Humanitas, da Unisinos,   Finazzi explica que “por mais equilibrada que seja a pessoa, caso não encontre soluções práticas para livrar-se das causas do sofrimento,  a possibilidade de adoecimento é enorme. Alguns somatizam doenças físicas, outros desenvolvem transtornos mentais. De forma extrema, alguns entendem que a vida não merece ser vivida, optando pela radicalização por meio do suicídio”. 

Finazzi explica, na  entrevista ao IHU On-Line (http://www.ihu.unisinos.br),  que  o suicídio, fenômeno altamente complexo, depende de numerosas variáveis. “O que fiz foi avaliar se fatores adversos relacionados à organização do trabalho poderia ser um fator – dentre muitos outros – capaz de contribuir para que o trabalhador desenvolvesse pensamentos suicidas e, em casos extremos, vir a cometê-lo.”

 

A pesquisa de Finazzi revela que, entre os bancários, a incidência de patologias e suicídios tem um índice preocupante. “A relevância do setor bancário na economia nacional e a sofisticação dos métodos gerenciais dos bancos, os quais passam por reengenharias permanentes nos últimos 20 anos, constituiu-se em valiosa oportunidade para o estudo de como mudanças organizacionais bruscas podem interferir na subjetividade do trabalhador. O suicídio talvez seja o ato que melhor traduza o ápice do sofrimento”.

O pesquisador  esclarece que   a perda do equilíbrio está relacionada à  constatação de que o discurso reiteradamente veiculado nos informativos da organização, “impregnados de mensagens de amor à empresa e empregados felizes”, contrasta violentamente com a percepção de realidade do trabalhador. “O trabalhador, na nova organização do trabalho, é o dono de sua carreira, o único responsável pelos infortúnios de que for acometido – afinal, se não estiver satisfeito, que se demita, pois há muitos lá fora querendo a vaga. O estudo de Finazzi revela que quando os adoecidos de que fala sua pesquisa precisaram das empresas, não encontraram nenhum apoio efetivo.

Mas, o que leva o trabalhador à desestabilização e à perda da vontade de viver? Para  Marcelo Finazzi,  “ o trabalho é poderosa fonte de identidade e pertencimento social: o que os sujeitos esperam, no mínimo, é a valorização do que está sendo feito em prol dos objetivos organizacionais. O problema é que, em algumas ocasiões, o sujeito se dedica durante 10, 20, 30 anos, desenvolve laços afetivos com a empresa e, de repente, é convidado a se retirar ou é excluído compulsoriamente, como se toda a dedicação incondicional não tivesse valor algum.”

 

Como explica Finazzi, com base em seu estudo com os bancários,   atitudes radicais em geral vêm depois que  as oportunidades vão  sendo eliminadas, uma a uma. Nos casos que estudou, ele verificou que “o processo de assédio – ou outra circunstância causadora do sofrimento – se intensificava na mesma proporção em que procuravam apoio institucional das empresas, que se mostravam incapazes de apresentar qualquer opção prática para resolver os conflitos.”

Mas o simples afastamento para tratamento médico não é suficiente.  A psiquiatrização é outro problema,  pois a empresa transfere para a área médica problemas  causados pela administração deficiente da questão humana. Comentando  situações que pesquisou, Finazzi comenta: “Era  mais fácil medicá-los com antidepressivos e ansiolíticos do que corrigir estruturas gerenciais anacrônicas ou punir gerentes autoritários.O que eles não queriam era ficar em casa, recebendo os salários como esmola. É bem provável que o melhor tratamento era que continuassem trabalhando, com as mentes ocupadas e a sensação das tarefas bem desempenhadas.”

 

Perda da esperança

Na pesquisa realizada por Finazzi ficou bastante nítido que a onda de suicídios de bancários, na década de 1990, teve características distintas dos suicídios dos anos 2000. “Na primeira fase, os suicídios – quando puderam ser vinculados ao contexto do trabalho – relacionaram-se com as transformações radicais do setor em intervalo muito curto de tempo. Sucessivos planos de desligamento, com demissões contínuas, em bancos públicos e privados, criaram pânico na categoria. Por exemplo, apenas no segundo semestre de 1996, foram cortadas quase 150 mil vagas no setor. Os suicidas da primeira fase são aqueles que sucumbiram ao terror psicológico de ter que ostentar felicidade, mesmo sabendo que, no dia seguinte, poderiam figurar na próxima lista de demitidos ou de serem removidos compulsoriamente para outros cargos ou cidades. São aqueles que efetivamente foram vítimas das reestruturações, pois perdiam os cargos, os empregos e, sobretudo, a esperança”.

 

Já os suicídios dos anos 2000,  conforme o estudo, estão relacionadas  mudanças estruturais introduzidas com as  reengenharias nos métodos de produção. Então, como diz Finazzi: “O trabalho se torna fardo pesado, pois, o fator custo restringe a contratação de novos trabalhadores, sobrecarregando os pouco existentes. Os que ficam são compelidos a trabalhar mal, na medida em que são obrigados a desempenhar múltiplas tarefas, com velocidade crescente, sujeitando-se a erros.”   Além disso, “os assédios se disseminam como práticas comuns para fazer com que os trabalhadores produzam cada vez mais ou, de outra forma, como mecanismo de pressão para eliminar os indesejáveis. O medo é utilizado como estratégia de intimidação, pois, o contingente de reserva, que são os desempregados, pressiona aqueles que estão empregados a se sujeitarem a condições laborais precárias. É assim que o sofrimento do trabalhador gradativamente aumenta, conduzindo-o ao desenvolvimento das mais variadas patologias e transtornos mentais, à medida que os mecanismos de defesa empregados para aliviar o sofrimento vão sendo um a um eliminados. O adoecimento e, de forma extrema, o suicídio, tornam-se fenômenos endêmicos.”

Finazzi lembra ainda que o suicídio, de forma específica,  esteve em pauta nos sindicatos, nos anos 1990, por causa da  onda de suicídios na categoria. “Houve audiências no Congresso Nacional para tratar do assunto, inclusive, com ampla repercussão dos casos na mídia. Posteriormente, o tema caiu no esquecimento, mas perdurou no imaginário dos bancários:  em conversas com trabalhadores mais antigos, todos conhecem alguma morte.”

 

Os sindicatos, como se observa acessando seus meios de comunicação, agora  se preocupam em denunciar práticas  degradantes  das empresas e em alertar a sobre os males causados pelo assédio moral,  em alguns casos oferecendo  assessoria especializada em segurança e saúde no trabalho. Jozi Fabiani, do sindicato catarinense,  também faz críticas à  atuação da Previdência, pelo modo como vem tratando os adoecidos. “Muitos médicos peritos vêm descaracterizando o acidente de trabalho, porque eles também têm metas a cumprir e recebem ‘bônus’ se emitem menor quantidade de licenças para tratamento de saúde. É um absurdo que a previdência atue em cima de metas e que trabalhe com o sistema de altas programadas, sem verificar as reais condições do trabalhador para retornar ao trabalho.” A  sindicalista  faz um apelo aos colegas adoecidos para que não fiquem sozinhos, no desamparo, que procurem o sindicato para obter informações sobre seus direitos e serem orientados, inclusive juridicamente,  sobre como reagir à violência no trabalho.

 

Memórias do horror

Rubem Machado Barcellos Filho, que trabalha no Banco do Brasil e também faz parte da diretoria do sindicato, recentemente teve uma experiência paradoxal ao buscar a perícia do INSS. Ele havia quebrado cinco costelas, machucado   o cotovelo e deslocado o ombro ao cair de uma janela. Ao se apresentar para a perícia, lhe disseram que teria que retornar ao trabalho em uma semana. Só após argumentar sobre sua função (caixa!) e apresentar todos os exames e laudos que trazia consigo é que o perito  decidiu  lhe conceder os dias de que precisava para se recuperar.  “Mas ele ainda pediu que eu levasse declarações para ele poder se justificar”, conta o bancário, condenando o absurdo desse tipo de procedimento.

Rubem, que está perto de se aposentar, recorda momentos difíceis vividos no trabalho,  no período das grandes demissões “voluntárias”. Foram,  como ele lembra, verdadeiros processos de terror que atingiram os bancários, dentro do contexto do Consenso de Washington, que ditava as regras para os países da periferia capitalista. A privatização total do sistema financeiro era apenas uma das exigências funestas para os que trabalhavam nos bancos estatais, e veio, então, o período do expurgo de trabalhadores,  chamado  cinicamente de “ajuste da folha de pagamento”.

 

Entre os anos de 1994 e 2001, à medida  em que crescem em poder econômico os grandes grupos financeiros privados nacionais e estrangeiros, são privatizados, liquidados ou federalizados, para posterior privatização mais de 20 bancos públicos, informa Nise Jinkings. No estudo “Os trabalhadores bancários em face da reestruturação capitalista contemporânea”, ela lembra que “o governo brasileiro segue os preceitos neoliberais para o desenvolvimento capitalista, tornando o sistema financeiro nacional crescentemente dominado pelo regime de finanças de marcado e cada vez mais desancorado da esfera produtiva”. Seguindo o exemplo dos países capitalistas centrais, diz ainda o estudo,  os bancos brasileiros expandiram  suas atividades de negócio e venda de “produtos” financeiros, segmentaram sua clientela e adotaram medidas para a redução de custos administrativos e aumento da produtividade no trabalho.  

O Banco do Brasil, que, naquele contexto, estava na mira da privatização para atender à exigência do FMI, como  lembra Rubem, utilizava, entre outras desculpas, o argumento de que o ajuste da folha era necessário  por causa da informatização.  “Tudo isso  para mascarar a verdadeira intenção,  de  privatizar o banco, que chegou  a ficar dez anos sem realizar concursos externos.”

No governo de FHC, veio então a temporada de caça que os gestores batizaram candidamente de PDI (Programa de Desligamento Incentivado), reforçado por   transferências compulsórias e arbitrárias de trabalhadores.    Rubem conta: “A meta era demitir ‘voluntariamente’ 20 mil trabalhadores do BB em apenas 14  dias, de 1º de julho a 14 de julho de 1995, num processo gigantesco de assédio moral. Na agência em que eu trabalhava,  o gerente nos reuniu e disse que,   dos 55 funcionários, seis teriam  que ‘optar’ pelo PDI naquela mesma semana e que,  naquele prazo,  nós,os colegas, deveríamos indicar os colegas que se ‘beneficiariam’ da medida. Um nosso companheiro passou mal, quase teve um enfarto diante de nós, e eu disse aos colegas: – Isso não é decisão que cabe a nós, o gerente não  tem a procuração da empresa? É  ele que vai ter que pagar o ônus de decidir quem sai”.

 

Na primeira fase do  PDI o banco efetuou   14 mil ‘desligamentos” e   ampliou  o prazo  de ‘adesão’  para  atingir a meta de 20 mil, lembra Rubem. “Aquele foi um período de verdadeiro terror. Muitos saíram enganados, acreditando nas ‘vantagens’ de ter seu próprio negócio, mentiras vendidas covardemente em cursos relâmpagos de empreendedorismo.  Um nosso colega deixou o banco e abriu uma panificadora. Ele, que tinha sido bancário a vida toda, faliu em poucos meses e ficou endividado. Tempos mais tarde, ficamos chocados ao saber que ele se suicidara. Tristemente, naquele período do PDI,    de julho de1995 a fevereiro de 1996, tivemos notícias de que um total de  33 funcionários do Banco do Brasil se suicidaram”.

Dos que saíram, através do ‘desligamento incentivado’,  Rubem avalia que 99% se deram mal, e uns poucos conseguiram ganhar na justiça a reintegração  ao trabalho. “Dos meus conhecidos, praticamente todos que aceitaram o ‘desligamento incentivado’  vivem  uma vida dura, muito abaixo do padrão que tinham  quando eram bancários. Um desses nossos colegas  chegou a ficar internado dois anos, por problemas psiquiátricos.”  

As memórias dessas tragédias que já cumpriram fazem sofrer quem se recorda das tantas vítimas que sucumbiram ao horror econômico. Mas outras tantas tragédias anunciadas  pairam sobre a cabeça dos trabalhadores e foram estampadas nos cartazes  que os bancários catarinenses tiveram a ousadia de expor nas entradas das agências bancárias.  O corpo humano curvo, exposto ao arbítrio dos que, com mão de ferro invisível comandam, é uma imagem que grita em dias de greve. Mas essa imagem arrepiante alerta também para a necessidade imperiosa de explorados, opressos e assediados não silenciarem nos dias que seguirão,  depois que calar o fragor do movimento dos bancários nas ruas. Afinal, como diz Elie Wiesel, a neutralidade e o silêncio somente ajudam  opressores e  torturadores.