Cerca de 15 mil pessoas participaram neste sábado (20) da cerimônia de abertura da sétima edição do Fórum Social Mundial em Nairobi, capital do Quênia. A tradicional marcha que antecedeu o evento – e que reuniu por volta de 8 mil ativistas –, no entanto, deu aos participantes uma idéia mais exata do que se pode esperar deste FSM 2007. Partindo da favela Kibera, a terceira maior da África, apresentou uma predominância absoluta de organizações africanas, muitas delas ligadas a ordens religiosas ou de cooperação e solidariedade internacionais.
Às margens, caminhavam algumas crianças ou jovens, meio tontos pela inalação de cola, mas o tom das palavras de ordem apontou para uma nova reivindicação da região: a África não deve ser estigmatizada como um caos de pobreza, doenças e conflitos, dependente da solidariedade do mundo desenvolvido. E sim uma região com um histórico rico de resistência e lutas, que exige o direito de decidir seu destino.
Pelo sim, pelo não, os europeus da marcha em sua maioria eram envolvidos com trabalhos de cooperação e solidariedade. Massimo Barbiero, italiano que vive há sete anos em Nairobi, trabalha na comunidade católica Papa João XXIII, na favela de Kahawa Ocidental, onde vivem atualmente cinco mil pessoas. Segundo ele, apesar dos grandes problemas sociais, há um enorme potencial de desenvolvimento. “Com tudo o que existe, as crianças aqui são mais felizes do que na Itália”, acredita.
Sobre o FSM, suas expectativas estão divididas. “Espero que este Fórum seja o momento para se dar voz aos pobres. Em muitos processos, há um monopólio por parte das grandes organizações não governamentais. Espero que aqui não seja assim. Acho que o Fórum é um espaço para a construção de alguma mudança no quadro de pobreza criado pela política de globalização”. Cerca de 100 pessoas da comunidade em que Barbiero trabalha foram mobilizadas para a marcha de abertura do FSM. Mas o italiano avalia que poucas pessoas em Nairóbi tomaram conhecimento do Fórum.
O orgulho e o respeito pela história de resistência da África voltou a marcar as falas da cerimônia inicial. Segundo o senegalês Taufik Ben Abdallah, membro do Comitê Africano e do Conselho Internacional do FSM, o evento no continente é importante não para que se viabilize sua pobreza nem para que adquira um caráter de caridade, mas sim para fortalecer a África. “Hoje, o primeiro mundo saqueia e quer controlar nossas riquezas. Queremos vencer essas forcas que querem nos colonizar de novo”.
Wahu Kaara, membro da Marcha Mundial das Mulheres no Quênia, completa: “É hora de colocar a nossa agenda na mesa. Temos que dizer não à divida, ao livre comércio, a todos os poderes que querem falar em nosso nome. Temos que dizer não ao terrorismo de Bush, que não há membros da Al Qaeda entre nós, que somos vigilantes. E temos que dizer que queremos um mundo inclusivo, baseado nos valores essenciais da vida. Um mundo que diz não à comodificação dos recursos naturais e a tudo que estimula a guerra de negros contra negros. Já basta!”.
Gandhi da África
Uma das presenças mais aplaudidas na cerimônia de abertura deste sétimo FSM foi o ex-presidente da Zâmbia, Kenneth Kaunda. Ninguém ligou – ou, pelo menos, reclamou – quando, sambando, ele subiu ao palco e discretamente interrompeu o show de Martinho da Vila, a estrela musical da parte artística do evento, para fazer um longo discurso sobre os desafios do movimento altermundista.
Kaunda foi o fundador do Partido Unido da Independência Nacional da Zâmbia, criado em 1960, quando o país ainda vivia sob o domínio branco da então Rodésia – hoje Zimbábue. Quatro anos depois, a Zâmbia conquistou sua independência e Kaunda tornou-se presidente. Por cerca de 25 anos, ele governou a nação com base numa política que foi chamada de inclusiva, por uns, e de autoritária, por outros. Nacionalizou empresas importantes, apoiou os movimentos rebeldes de independência do Zimbábue e só deixou a presidência da Zâmbia em 1991.
Neste Fórum africano, Kenneth Kuanda parece ser um símbolo daquilo que os africanos buscam ate hoje: liberdade. Emocionado, ele saldou a diversidade característica do encontro, em que estão presentes “homens e mulheres, jovens e idosos, de diferentes cores, passaportes, com diferentes culturas e línguas”. “Percorremos uma longa distância para chegar até aqui: do tráfico negreiro e do colonialismo ao apartheid. Somos uma rica variedade da nossa humanidade, preocupada com o nosso futuro”, disse Kaunda.
Ao falar de lideranças mundiais contra a exploração e a violência, o ex-presidente da Zâmbia citou Martin Luther King, Che Guevara, o próprio Gandhi e ate Fidel Castro. Mas fez questão de ressaltar a importância da participação popular nos processos de libertação – qualquer que seja seu aspecto.
“Não estamos aqui por esses líderes, como disse Gandhi. Os líderes seguem o povo. Há muitos homens e mulheres que diariamente lutam pelos direitos de todos. Cada pessoa é importante. A luta se beneficia das habilidades de cada envolvido; depende do esforço de cada pessoa; não continuaria sem a intensa cooperação de homens e mulheres em todo o mundo”, disse. “Hoje ainda temos grandes desafios: pobreza, dívida, conflitos políticos, AIDS, conflitos pela terra. Para enfrentá-los, nossa luta na África nos mostrou que precisamos trabalhar em rede. A partir da nossa experiência, sabemos que esses desafios da injustiça e da exploração podem ser superados. É este esforço coletivo que pode garantir um mundo melhor. Nossa independência não será completa sem isso”, concluiu.
Contrastes
À primeira vista, a estrutura montada pelo comitê organizador de Nairobi para o FSM 2007 pode parecer incongruente com o discurso de integração e fortalecimento da África adotado pelos quenianos.
Montado em um enorme e moderno complexo esportivo em um bairro abastado de Nairobi, o FSM até tem um aspecto que poderia lembrar um evento das Nações Unidas, com grandes tendas brancas e altos preços de inscrição para participantes e atividades.
Individualmente, a inscrição custa US$ 7 para africanos, US$28 para o resto do Sul (incluindo jornalistas) e US$ 110 para os países do Norte. Mas para registrar atividades, os preços podem subir para mais de US$ 400 para as organizações participantes. Nas conversas entre estrangeiros e nativos em Nairobi, o custo do Fórum aparece como temática reincidente quando o assunto é a dificuldade de participação maior de organizações e movimentos de base.
Mas é preciso tomar cuidado com pré-julgamentos e leituras simplistas, alerta Moema Miranda, da secretaria brasileira e do Conselho Internacional (CI) do FSM. Completamente aos cuidados dos organizadores quenianos, a estrutura do FSM 2007 foi montada segundo as possibilidades e perspectivas dos anfitriões, sem intervenção dos demais membros do CI.
Sem suporte financeiro do governo local – que foi um grande patrocinador de outras edições do FSM, principalmente no Brasil em 2001, 2002, 2003 3 2005, e na Venezuela em 2006 -, e submetido ao conceito mercantil da cooperação internacional, os quenianos viram-se diante do desafio de viabilizar o evento da melhor forma possível.
“No Brasil, em 2005, o preço de inscrição foi bastante baixo, e quebrou fazendo uma dívida milionária. Alguém se perguntou quem pagou por isso? Como vamos fazer então? Só se faz Fórum onde tem governo amigo? A verdade é que o nosso movimento ainda é elitista, temos ainda que radicalizar a solidariedade. Como podemos implementar alternativas juntos se não nos encontramos? Estes são questionamentos que necessitam de respostas”, pondera Moema Miranda.
Uma visão realista do FSM 2007 e de seus participantes só será possível a partir deste domingo, primeiro dia das atividades. A se tirar pela marcha e pela cerimônia de abertura, no entanto, ficou claro que a África terá seu merecido espaço no movimento altermundista.
Fonte: Agência Carta Maior (Bia Barbosa e Verena Glass)